21 de abr. de 2015

Noite Russa)))


Único elogio que recebi da minha pronúncia de alemão foi de um russo. O Roman. Não só pelo nome, parecia o Polanski. Fisicamente lembrava o cineasta. Saímos do teatro conversando pela Treze de Maio. Fomos procurar um bar.

“Ei, Russo!”

Uma voz bêbada, do outro lado da rua. Sujeito corpulento, bermuda xadrez, camisa desabotoada. Contou que havia conhecido o Roman há pouco tempo. Eu tinha conhecido o russo uma hora atrás, depois de apresentar uma peça do Büchner, em alemão, no José Maria Santos.

“Se quiserem, podem ir na minha, beber e fumar.”

O apartamento ficava em um desses predinhos antigos do centro. Na sala, sentei num sofá bordô, todo furado de cigarro. O russo ficou numa banqueta bamba e o tal do Jurandir foi pegar três latinhas de Kaiser na geladeira. Desde que nos encontrou, não parava de falar. Os “erres” puxados do interior do Paraná.

“E sequestraram o primo dela na semana passada. Só não bate o cigarro no carpete, tudo bem? Se quiser, liga a tevê. Essa vizinha é uma lazarenta. Ei, Russo, e aquela morena?”

“O que ele está dizendo?”, Roman perguntou.

“Weiß nicht”, respondi, e continuei falando com o russo numa mistura de alemão estropiado com inglês capenga. Quando eu falava um pouco de português, o russo também entendia. O sotaque do Jurandir, porém, era demais.

“Er sagte über eine frau, brunette girl, que você estava...”, expliquei.

“Dah!”, respondeu o russo em russo, dando risada e sacudindo os braços.

“Malandro!”, disse Jurandir, buscando mais uma latinha. “Ei, Russo, vou te contar: esse povo curitibano é uma merda, hein?”

Ao voltar, Jurandir me perguntou: “Curitibano?”.

“Parnanguara.”

“Uma latinha pra você. Então, Russo: reparou que curitibano é uma merda?”

 “O quê?”

Jurandir continuou: “Vivi em tudo quanto é lugar. Bahia, Mato Grosso, Espírito Santo, Rio Grande do Sul”.

Sua família criava gado em Rondônia. Irmãos espalhados pelo país. A maioria trabalhava com pecuária. Ele vendia roupas íntimas femininas.

“Uma coisa é certa: não há raça pior do que carioca. Pra pegar amizade é instantâneo. Depois enchem o saco. Abusam. Uns folgados!”

“O quê?”

“Pessoal da Bahia, quando dizem que são preguiçosos, não é brincadeira. Vendi calcinhas por lá uma época e... Porra, Russo!” Roman derrubou no carpete a maconha recém-acesa por Jurandir. Aproveitei a pausa para traduzir um pouco.

“He lived in Bahia and die Leute sind wirklich Müßiggänger. You know? Vadiagem.”

“Eu jogar capoeira da Bahia. Fazendo aulas.”

“Os paulistas gostam de trabalhar. Mas não gosto deles. Convencidos. Como os gaúchos. Se acham donos do pedaço. Tudo veado. Passa a bola, Russo! Mas são cultos, hein? Porto Alegre é a cidade que mais lê livros nesse país.”

“Tenho amigos gaúchos. Letrados.”

“Letrados?” Dessa vez o russo não me entendeu.

“Leem bastante, os gaúchos.”

“Que nem na Rússia, né?”, disse Jurandir.

“O quê?”

Repeti a frase de Jurandir e Roman entendeu.

“Russo tá chapado! Olha a cara dele.”

“Que autores você gosta, Roman? Russian Schriftsteller?”

noite russa

“Sorokin. Romanov. Vários!”, disse, soltando uma baforada.

“Pois é, mas a raça mais filha da puta é a dos mineiros. Desconfiados, demoram para virar amigo. Depois só querem te foder! É o povo mais traiçoeiro que tem.”

“E os curitibanos?”, provoquei.

Na janela da sala, sem camisa, derrubando cinzas no carpete branco, Jurandir respondeu: “Estou aqui há meio ano, mais ou menos. Nenhum vizinho falou comigo. Sequer me cumprimentaram! Em um bar, as pessoas que conversam não são daqui. O Russo aí é da Rússia. E você é de onde mesmo?”

“Paranaguá. Conhece?”

“Acho que não. O bom dos curitibanos é que pelo menos respeitam a privacidade. A vizinha da frente, passando roupa. Está me vendo. Mas finge que não. Fiquei pelado outro dia e ela nada. Ninguém vem te pedir açúcar, se fazer de amigo pra depois te foder.”

“O que ele disse?”

“Cerveja, Russo?”

Jurandir continuou da cozinha: “E quando são seus amigos, eles são seus amigos. A minha ‘ex’, Sandra, é de Curitiba. Família dela toda. Hoje mora em São Paulo.”

Fui ao banheiro, no fim de um corredor atulhado de manequins, caixas cheias de calcinhas, sutiãs e pôsteres da Duloren. Voltei e Jurandir estava no sofá, calado, mastigando um ovo de codorna. De sua banqueta, também comendo um ovo, o russo olhava para ele.

“Saudade da lazarenta”, disse baixinho, abrindo a décima Kaiser.

“Está tarde. Vamos procurar um bar”, eu disse a ele.

Jurandir se levantou e abriu a porta. Abraçou Roman.

“O único nessa cidade que me entende.”

Em frente ao prédio, eu estava com dor de cabeça e disse a Roman que ia para casa. Depois dessa noite, nunca mais vi o russo. Nem Jurandir.


Franco Caldas Fuchs nasceu em Paranaguá. É ator. Vive em Curitiba (PR).

Ilustração Bianca Franco

Conto publicado no jornal Cândido, edição 45