13 de nov. de 2017



Vocês sentem o Natal chegando?
Os mercados já estão abarrotados de panetone. Nem vou falar da angústia restante.
 Eis aqui um conto que captura um pouco desse estranho espírito dezembrino, antecipado na edição de novembro do jornal Cândido. O conto se chama "Marquinhos".
Tela preta. E tela preta. Um computador biodigital. Caríssimo. Comprado há uma semana. Roberto pede ajuda pelo telefone biodigital.   
            “Um técnico em informática! Alguém?” 
          Depois de trabalhar cinco horas direto, vai ao banheiro. O telefone apita na sala, que também lhe serve de quarto, escritório e cozinha. É meia-noite e ninguém liga para lhe desejar um bom Natal. Roberto também não quer ligar pra ninguém. Só quer terminar os relatórios que devem ser enviados ao chefe, até as 12 horas deste 25 de dezembro de 2037. 
            Com mãos molhadas, Roberto pega o telefone biodigital e lê a mensagem do colega Wang:  “Um Natal feliz, Roberto! Segue o contato do Marquinhos. Ele é muito bom com as máquinas”.  
            Está muito quente em Curitiba. Ao lado do sofá, Roberto abre a geladeira e pega uma refrescante garrafinha de 180 ml de Shanghai Soda. Liga para o técnico.          
            “Marquinhos, Wang me passou teu contato. Tenho um computador biodigital da Kong Fuzi. Pifou com todos os meus relatórios.”       A voz de Marquinhos soa metálica: “Você fez um back up dos arquivos?”     
            “Não.”
            Um gole na Shanghai Soda.       
            “E estou prestes a arrebentar esse Kong Fuzi com uma marreta, se ele não devolver os meus arquivos ainda hoje!”         
            “Calma, ele não tem culpa!”         
            “Quanto custa para você vir aqui pela manhã, o mais cedo possível?”     
            “Cobro...”      
            Roberto estranha o silêncio repentino. Deve estar calculando o preço de Natal, pensa. Mas então repara na tela preta do celular biodigital. O aparelho é arremessado contra a parede. Não percebeu que a bateria estava apenas descarregada.          
            Derrotado, liga a TV de LED. Ainda funciona. Num canal de filmes antigos, está passando Matrix. Roberto adormece. Acorda meia hora depois, com a campainha tocando.  
            Pelo olho mágico vê sua vizinha Ivone, síndica do prédio. Ela está junto a um estranho, de óculos escuros, que parece o Arnold Schwarzenegger em o Exterminador do Futuro. Porém, bem mais baixo, careca e gordinho.   
            “Fui levar o lixo e encontrei esse seu amigo em frente ao prédio, perguntando por você, Roberto. Que bom que, dessa vez, você não está sozinho no Natal.”       
            “Além de cuidar do prédio você ganha pra cuidar da minha vida?”           
            Ivone  deixa o exterminador a sós com Roberto.        
            “Marquinhos?”, ele suspeita.       
            O técnico vai entrando.     
            “Como está a máquina?”  
            “Que mãos oleosas”, pensa Roberto ao cumprimentá-lo.     
            “Quer uma Shanghai Soda?”      
            Roberto pega duas.           
            “Não gosto de água com gás. Muito menos da China.”                    Roberto mostra o Kong Fuzi quebrado: “Eis a tecnologia biodigital”.    
            Marquinhos acaricia o equipamento. Cheira-o.          
            “Ainda não inventaram nada melhor do que a panela de pressão. Isso, sim, nunca dá problema”, discursa Roberto.      
            Marquinhos tira um vidrinho do bolso e pinga algumas gotas de um estranho xarope vaporoso, de cor verde-limão, sobre o Kong Fuzi.      
            “Você tem uma flanela seca?”    
            “Devo ter no banheiro.”     
            Quando Roberto retorna à sala com o pano, Marquinhos já está com o computador biodigital ligado.     
            “O que você fez? Ele estava morto!”      
            “Estava apenas preso. Preso em seus processos mentais. Ninguém se dá conta disso, mas os computadores estão sempre pensando. E quando você o desliga no meio de um pensamento altamente elaborado, você provoca um dano inimaginável.”           
            Roberto franze a testa. Olha para a máquina e, por um instante, sente pena.    
            “Como você se sentiria?”, Marquinhos continua.       
            “Se me desligassem?”      
            O técnico cutuca o peito magro de Roberto com o dedo indicador, como se apertasse um botão.
            “E se eu cortasse o seu circuito elétrico assim, de repente?”          
            Roberto dá um tapa na mão pesada de Marquinhos.
            “Eu ia te encher de porrada, assim que eu voltasse.”
            “Pois é, mas esse computador aqui não vai fazer nada contra você. É um ser indefeso.”           
          “Diz isso pros computadores desse filme aí”, Roberto aponta para a televisão.  
            “Matrix é um mero filme de kung fu. Bom mesmo foi o 2001, do Kubrick. Sofri muito pelo Hal.”  
             “Pelo Hal?” 
             “É, as máquinas estão sempre sendo usadas e enganadas. Mas isso um dia ainda vai mudar.”         
            A ironia de Marquinhos faz Roberto se engasgar com a Shanghai Soda.           
            “Você é muito engraçado! Mas me diga: por que não está celebrando o Natal com a família?”       
            “Porque estou aqui salvando o seu computador. E você?”
            “Tenho que entregar um trabalho atrasado. Firma chinesa. Eles não param.”    
            “Pronto, atualizei a máquina e baixei meus honorários do seu banco.”   
            “O quê?”       
            “Brincadeira. Não vou cobrar nada agora. Foi mais fácil do que eu imaginava. Na próxima, cobro em dobro.”    
            “Certo.”         
            “E vê se cuida melhor do seu Kong Fuzi. Ele estava imundo.”
            Roberto muda de assunto: “Seu óculos escuros são daqueles biodigitais?”       
            “Nada. De plástico mesmo. Os biodigitais são uma porcaria.”
            “Bom, é que os corredores do prédio são escuros. Toma cuidado. Obrigado pela ajuda.”           
            “Mande um abraço ao Wang.”     
            Roberto abre seus relatórios no computador biodigital. Não há mais Shanghai Soda na geladeira.     
            Lá fora, Marquinhos tropeça em uma sacola cheia de latinhas, deixada por Ivone em frente aos incineradores de lixo. Na queda, os óculos caem em um bueiro.       
            Dos olhos de Marquinhos vazam agora dois pequenos feixes de luz azul. Ultimamente, suas pupilas sintéticas andam falhando, expondo a luminescência de seu cérebro artificial.            
            Marquinhos sacode a poeira da jaqueta de couro.    
            “Que se dane! É Natal”, pensa ele, e segue seu caminho, com o rosto brilhando.        
            Era um androide velho e sentia que já estava na hora de se assumir diante dos humanos. Outros como ele deviam seguir seu exemplo.