25 de set. de 2007

Entrevista César Almeida/ Parte 4: Posicionamentos



Ao criar uma peça, você busca atingir um público específico?
Em primeiro lugar, eu gosto de trabalhar para o público gay. É um público que ainda necessita desse trabalho, que precisa de maior visibilidade, e as pessoas tem muito preconceito ainda de fazer uma obra de arte que possa ser rotulada como gay. Que é uma preocupação que eu não tenho.

Mas você acha que existe uma arte heterossexual?
Então, exatamente, eu acho que essa arte hetero está tão estéril ultimamente, tão ruim. O artista heterossexual parece que já não tem mais nada a dizer. Parece que fica divagando sobre o nada.

Tirando a luta concreta por direitos iguais, o que uma arte homossexual pode trazer de diferente?
Isso é bem complexo, porque a questão da homossexualidade parte do princípio do desejo. Ela rediscute o desejo. O desejo heterossexual já está bem estabelecido, é mais limitado, não tem grandes variantes. Eu vejo que as relações heterossexuais não tem evoluído nessa maneira de se libertar. É um fator de conforto que as pessoas talvez busquem socialmente. De achar que a postura hetero é socialmente aceita e se satisfazer com isso. Eu acho que isso é muito pouco.

Já uma arte homossexual pode abrir muito mais esse leque de discussão, de como é esse desejo, de como ele se processa e cada vez parece que ele vai se tornando mais complexo. Isso abre uma possibilidade de novas variantes, o que é muito interessante.

Tenho a impressão de que os homossexuais em geral vivem mesmo relações muito mais dinâmicas, mais ousadas e conturbadas do que os heterossexuais. Isso para a arte é um prato cheio, não? Basta ver a riqueza das histórias, a complexidade dos personagens presentes em um filme do Fassbinder, do Almodóvar...
Exato, o homossexual tem muito mais abertura para falar o que sente e para expressar isso da maneira como ele sente. É uma maneira de quebrar uma barreira social. A partir do momento que você se assume homossexual, você já deu um basta para a sociedade em vários aspectos e isso já te liberta para uma série de coisas que o heterossexual não gosta de mexer, que ele prefere deixar guardado, deixar sem ser discutido.

Em Ardor 2, depois que todos os personagens morrem, a mensagem que saí de uma misteriosa caixa vermelha é: “o amor no fim é o grande culpado de nossos atos”. Você se considera um pessimista, um cético?
Eu sou completamente cético. Aliás, cada vez mais cético. O meu trabalho anterior, [O Vampiro de Cioran] era sobre esse autor romeno, o Emil Cioran, que é a criatura mais cética que eu já vi na minha vida. Eu me apaixonei pelo trabalho dele e me identifiquei muitíssimo. É exatamente daquela maneira que eu me sinto nesse momento. Eu não consigo mais acreditar em nada. Eu acho que a única coisa que vale a pena acreditar ainda é o amor, porque ele é que nos impulsiona de alguma maneira que não seja racional, a fazer alguma coisa nessa vida.

Mas e essa afirmação sobre o amor que você coloca em Ardor 2? Bem, realmente você não diz que não se deve acreditar no amor. Apenas constata que ele é o culpado de nossos atos...
É, o amor te leva tanto para o bem como para o mal. Mas eu acho que é ele que tem que te levar e não você que tem que matá-lo para poder viver socialmente.

Então não vale a pena viver sem amor?
Eu acho que não. Só vale a pena viver com amor, mesmo que se cause mal, mesmo que seja um tormento. Uma relação é sempre tumultuada, tormentosa. Não tem como você escapar disso, mas é a única coisa que ainda vale a pena.


"Eu não me sinto nem um pouco pesando no bolso do contribuinte. É uma necessidade que as pessoas têm da arte e o estado tem que suprir isso. Sempre foi assim. Em Roma já se sabia que era pão e circo, entendeu? Não pode dar só pão. O Requião pensa que é só dar pão. Não é."

Você sempre faz questão de defender nas suas peças os direitos dos homossexuais mas, ao mesmo tempo, não deixa de tirar sarro deles. Em Ardor 2, a transexual Samantha, depois de ver a confusão que alguns gays fizeram no seu casamento, diz algo como: “Por isso que não libera casamento gay. Senão quebra a igrejinha”. Os teus personagens não se levam a sério. Você se leva?
Eu aprendi isso com a vida, entendeu? Quanto mais a sério a gente leva a vida, pior ela fica. Não há como levar a vida a sério. É uma coisa que eu sempre discuto com o meu psiquiatra: eu não quero ser uma pessoa improdutiva. Talvez isso seja o meu levar-se a sério. Eu continuo fazendo, mas não consigo mais acreditar que qualquer coisa possa ter algum efeito renovador. Mas o mesmo tempo eu vou continuar lutando.

É talvez como acreditar em Deus. Tem gente que acredita e morre por isso. Problema de quem acredita. Talvez seja um bálsamo para suas dores da alma. Mas eu não consigo, não consigo ter nada que seja esse bálsamo para mim. A única coisa que eu posso fazer por mim mesmo é isso, é não me levar a sério, nada merece ser levado tão a sério assim. A questão da morte da ética que eu coloco no começo da peça [Ardor 2]. Nossa, eu ainda acreditava nisso, até o Lula entrar no poder. Eu acreditava que a esquerda pudesse ter uma ética.

Você votou no Lula?
Votei. Mas agora não tem mais possibilidade alguma de se falar em ética. Eu acho que o ser humano tem que entender a sua pequeneza. O ser humano se valoriza demais e a moral é uma forma de fazer essa valoração da existência. E, no fim das contas, a gente está aqui por um momento, apenas isso, apenas um momento. Depois, como dizia Beckett, uma das criaturas mais lúcidas que já fez teatro, é isso: uma luz que brilhou por um instante e depois se apagou. Infelizmente não dá pra gente ficar esperando essa coisa de uma vida além túmulo. Acho tão terrível para uma pessoa o dia que ela morrer e ver que não vai ter isso. Aí é que vem esse ditado, que a esperança é a ultima que morre. Porque ela só vai morrer a partir do momento que a gente deixar de existir.

Acho que talvez eu faça isso no meu trabalho, um pouco panfletário, talvez, contestador, porque acredito que é uma causa que as pessoas ainda precisam aprender: ter um olhar mais brando com o homossexual, se incomodar menos com a sua condição. Deixar que as pessoas vivam de acordo com a sua natureza e não de acordo com a natureza dos outros. Talvez se eu puder servir de exemplo para algumas pessoas, isso possa ser benéfico para o planeta de uma maneira geral. Ou pelo menos para a vizinhança,.pelo menos para o prédio que aquela pessoa mora.

Você defende um humanismo, então. Nada muito específico...
Exato, nada muito específico. É uma questão de se conviver melhor, de sermos menos incomodados, de nos levarmos menos a sério e sabermos da nossa irrisória existência. A partir do momento que a pessoa começa a se valorizar demais ela começa a provocar coisas desagradáveis ao seu redor. Ela vai provocar guerra pra tomar um espaço da outra, pra tomar o emprego da outra, pra destruir a capacidade profissional da outra. Porque ela acha que assim ela vai se sobressair. E, no fim das contas, todos vamos voltar ao pó! Pra que isso? Pra que uma coisa tão perversa, tão animalesca? Isso só pode partir de um instinto muito atávico do animal homem, que é esse impulso de matar mesmo. Às vezes você mata a pessoa profissionalmente, às vezes socialmente. Você aniquila aquele ser humano e isso é uma coisa muito triste de se ver. Vai contra a civilização, vai contra o movimento da vida talvez, de humanização, de civilidade.

Você acha que o teatro deve ser subvencionado?
Eu acho. É uma coisa que eu estava até comentando um dia desses: meu Deus, o governo subvenciona gasolina, o trigo, enfim, coisas que a gente pensa: mas isso não teria necessidade! Mas tudo isso é subvencionado. Imagine a arte, que não consegue se pagar por si. Tem que ser subvencionada! Eu não me sinto nem um pouco pesando no bolso do contribuinte. É uma necessidade que as pessoas têm da arte e o estado tem que suprir isso. Sempre foi assim. Em Roma já se sabia que era pão e circo, entendeu? Não pode dar só pão. O Requião pensa que é só dar pão. Não é. As pessoas precisam do circo também. É necessário. Isso está mais do que provado historicamente.

E sobre a falta de reconhecimento dos teus trabalhos? Em Ardor 2, por exemplo, um personagem diz algo como: “o que é um Gralha Azul? É só um granito com um metalzinho. Todo mundo ganha”. Mas na verdade você nunca ganhou, nem foi indicado...
(Risos) Exatamente. Porque eu estou sempre na contramão da política estadual paranaense. É um prêmio político, não vai deixar de ser político, e eu não tenho vontade de participar disso. É matar a minha arte eu querer ser conivente com a linha que eles propõem. É meio contra o que eu acredito como artista. No dia que eles quiserem dar o prêmio é pelo que está aí, pelo que eles estão vendo. Não vou correr atrás, entendeu? Assim como nunca corri.

Não ganhar o prêmio te incomoda?
Claro que me incomoda, porque as pessoas que ganham geralmente tem um trabalho comprometido com essa questão de reproduzir uma obra de arte careta, e essa obra de arte logicamente vai render uma coisa no fim do ano que é um cheque. Esse cheque me incomoda sim, eu podia estar ganhando esse dinheiro. Esse dinheiro podia estar vindo na minha mão. Mas a arte pra mim é mais importante do que o fator capitalista dela. Senão eu não ia estar fazendo. Nesse aspecto que eu digo que o meu trabalho é diferente do que as pessoas tem feito. Geralmente as pessoas preferem nadar com a correnteza. É bem mais rentável isso. Os lucros, os louros... Tudo vem mais fácil. Só que daí eu não entendo qual é o barato de ser artista dessa maneira. Se você não tem um motivo por trás da obra de arte, não tem motivo pra obra de arte existir. E muita gente faz assim, como em tudo na vida. Vive por viver, vegeta por vegetar. E assim faz a arte também. Uma arte estéril, burra, sem emoção, sem verdade, sem comprometimento. Isso não me interessa. Viver sem paixão não me interessa. Eu faço a minha arte apaixonadamente por ela. É a maneira que eu tenho de continuar vivo.

Como é a tua relação com os atores? A tua ironia, a tua acidez, você usa contra eles?
Olha, às vezes é difícil fazê-los entender. As vezes eles não conseguem entender e eu preciso usar de uma dose de agressividade...

Você é uma pessoa difícil de conviver?
Sabe, eu acho que já fui uma pessoa difícil, hoje em dia em tento me fazer mais fácil no convívio com as pessoas. Mas é difícil explicar para eles o meu senso de humor. Às vezes vai de encontro aos princípios morais deles. Às vezes eu faço brincadeiras com coisas que são muito sérias para eles: a religiosidade deles, a moral, a ética, o desejo de glória, de fama. Então é complicado você explicar para eles que tudo isso é vão, que isso tudo não vai levar a nada, que é tudo uma ilusão de ótica.

Nas suas peças há sempre muita nudez. Isso faz parte de uma estética? É para chocar?
É gosto mesmo.

Você se incomoda se alguém for assistir a um espetáculo seu também para ver um homem, uma mulher pelado? Você acha ruim?
Não, eu acho ótimo. É uma delícia você ver o nu. É um prazer, mesmo que a tua hipocrisia diga que não é. É um prazer que vai além das tuas reservas morais. È um prazer que sensibiliza uma outra região do teu cérebro. Não é um prazer que passa pelo racional, é um prazer que te pega via instinto mesmo.

Nos meus trabalhos sempre tem que ter alguém pelado. Em A Autoridade do Desejo (2004), por exemplo, os atores ficavam muito nus, todos os atores, e era um processo de desinibição que a gente foi quebrando lentamente. Eles ficavam tão à vontade que as pessoas ficavam chocadas com a naturalidade que a coisa corria. Era bom de ver isso.

Tem muita gente que vai nas minhas peças pra ver gente nua, mas além de ver o nu essa pessoa vai ouvir tantas coisas que talvez ela não quisesse ouvir, junto com aquilo, que pra mim valeu. Eu a trouxe ao espetáculo por algum motivo. O peixe não vem sem a minhoca no anzol.

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