6 de set. de 2007

+ Entrevista
Diretor de Parasitas fala sobre a montagem da peça
O parasitismo é algo natural, mas não precisaria ser assim, diz Henrique Saidel
Fotos: Franco Fuchs


O diretor Henrique Saidel é um dos eixos que sustentam a Companhia Silenciosa, ao lado de Giorgia Conceição e Léo Glück. Os três formaram o grupo em 2002, enquanto cursavam a Faculdade de Artes do Paraná (FAP), e desde então já realizaram 16 montagens.

No momento, a companhia reapresenta a peça Parasitas, no Teatro Cleon Jacques, até o dia 16 de setembro.

A seguir, confira a entrevista feita com Henrique, horas antes do primeiro ensaio geral da peça.

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Francofonia – Num dos programas antigos de Parasitas, havia um texto, aparentemente científico, dizendo que o parasitismo existia “desde o surgimento da vida, há 4 bilhões de anos atrás, em todas as espécies...” Para você, o parasitismo é mesmo algo inevitável nas relações humanas?
Henrique Saidel – Quando estávamos montando a peça, fizemos uma pesquisa de termos e palavras. Parasitismo era uma delas. O texto que colocamos no programa então foi tirado de uma monografia de biologia, que falava de parasitas. Quando li aquilo eu pensei: nossa, que loucura! Na realidade não foi tanto acreditando nisso. Não quis fazer um transporte do biológico para o social. Mas achei tão peculiar o determinismo da frase, afirmar que isso sempre existiu... Eu achei curioso. De fato, em termos biológicos, o parasitismo é uma coisa inerente à vida. Tem bicho que só vive disso, não tem outro jeito de viver.

Mas assim como eu concordo que o parasitismo é algo natural, também acredito no contrário disso, que você não precisaria ser parasita. No entanto é normal que existam essas relações, mesmo que a gente não goste.

Francofonia – Você se consideraria um parasita? Ou um parasitado?
Saidel – Isso sempre rola, mas também é difícil determinar esses limites. Por exemplo, existem parasitismos que são benéficos, como a nossa flora intestinal [conjunto de bactérias que habitam o intestino], e se não fossem eles a gente não ia conseguir viver. Mesmo em termos biológicos, nem todo parasitismo é ruim. E dizer que eu sou um parasita ou que eu sou um parasitado dá uma impressão que é uma coisa permanente.

Eu acho que essas coisas se estabelecem de forma pontual. Daí a gente pode entrar também em questões panfletárias e dizer que somos parasitados pelo governo... Mas eu não me sinto muito à vontade para transitar por esse campo. Mas podemos alegar isso, e dizer que eu também parasito, sei lá... se eu faço um gato na Net. Eu parasito a Net, se a gente for colocar assim. (Risos) Não vai colocar isso, hein?

Isso rola de monte. Isso é parasitismo? Pode ser, né? Mas é uma coisa que acontece sempre, e em certa medida todo mundo em algum momento já parasitou. Desde uma mãe que mima demais um filho, o filho que é muito mimado e fica lá pedindo me dá isso, me dá aquilo, e o pai vai lá e se f.... pra pagar. Se você for levar isso radicalmente, você pode considerar uma forma de parasitismo. Ou então uma pessoa com mais de 30 anos que ainda não saiu da casa dos pais...


“Lendo o texto, eu ria muito. Depois é que eu parei para pensar do que eu estava rindo.”


Francofonia - Como o texto de Parasitas chegou até a Companhia Silenciosa?
Foi um caminho meio tortuoso. A Ana Christine, uma amiga nossa, foi morar em Buenos Aires, e um dia ela mandou um e-mail dizendo que tinha descoberto um autor no ciclo de leituras que o Goethe promovia lá. Ela tinha visto La Niña Fria (Das kalte Kind) [também de Marius von Mayenburg] e disse, olha, vocês tem que conhecer esse cara. E aí eu comecei a pesquisar. Ela então mandou para a gente uma tradução de Parasitas, mas que não tinha o nome do tradutor.

Mais tarde, quando decidimos montar o texto, eu baixei uma outra tradução no site do Goethe, mas era uma tradução em português de Portugal. Então fui conversar com a Claudia [Römmellt, diretora do Goethe Institut em Curitiba] no Goethe a ela conseguiu que a Christine Röhrig cedesse a tradução dela para gente, que coincidentemente era a mesma que a nossa amiga tinha nos mandado. Depois a Claudia conseguiu que a editora na Alemanha nos cedesse os direitos do texto original.

Ao mesmo tempo, era a minha montagem de final de curso [na FAP] e a gente pensou: vamos experimentar fazer um texto de outra pessoa – porque até então a gente só montava textos nossos. Parasitas é um texto que, comparado aos nossos, é mais tradicional. Decidimos também ser fiéis a ele, e fomos. Só cortei uma cena, uma fala maior do Petrick com a cobra, que eu achei meio desnecessária. Mas dentro das cenas não há corte nenhum.

Francofonia – E o texto, ele foi escrito em 1999...
Saidel – Foi escrito em 1999 e estreou em 2000, em Hamburgo, quando o Mayenburg ainda estava lá. Depois que estreou Parasitas que ele foi para Berlim. Quem dirigiu foi o Thomas Ostermeier, que agora está na Schabühne. Ele foi chamado para dirigir na Schaubühne e levou o Mayenburg junto.

Francofonia – E a tradução da Christine Röhrig foi feita em 2002...
Saidel – Eu não lembro exatamente, mas foi logo depois. A tradução é super recente. Tanto que quando a gente fez a montagem no ACT (Ateliê de Criação Teatral) em 2006, e a Christine [Röhrig] veio assistir.

Francofonia – E o que ela achou?
Saidel – Olha, ela disse que gostou bastante. Não sei se ela costuma dizer que gosta de coisas que não gosta, e falou só para agradar, mas ela disse que gostou, e disse até que pensou em mudar algumas coisas na tradução, rever alguns termos, vendo a montagem. (...) Foi bem bacana conhecê-la, até porque várias coisas que a gente gosta, os textos do Heiner Müller, por exemplo, tem sempre o nome dela. Dela e do Marcos Renaux.

Francofonia – E vocês foram os primeiros a encenar Parasitas?
Saidel - Sim. Antes já tinha sido feita uma leitura dramática da peça num ciclo de leituras em São Paulo. Lá eles leram vários textos do Mayenburg, inclusive o Parasitas. E daí tinha sido feito uma montagem em São Paulo da peça Cara de Fogo (Feuergesicht). Mas do Parasitas não tinha sido feito montagem nenhuma, e a gente confirmou isso com a editora.



Francofonia – Qual é a importância desse texto e do autor Marius von Mayenburg?
Parasitas e Cara de Fogo foram os textos com que ele mais ganhou prêmios. Agora ele deve estar com 35 anos, mas antes ele era super novo e de repente ganhou tudo. Daí o Ostermeier também bombou e eles foram para Berlim.
Agora, na realidade, a gente nunca parte disso, de pensar, ah, vamos montar um texto importante... Mas o que ajudou a gente a decidir fazer esse texto foi o fato de ser um texto alemão, de ter um ponto de contato com a cultura alemã, que na época estávamos muito ligados. E a gente achou importante também pelo fato de trabalhar com um texto contemporâneo, um texto novo.

Francofonia – Aproveitando esse gancho, o que o estilo e a proposta de Mayenburg tem em comum com a Companhia Silenciosa e os trabalhos que o grupo vem desenvolvendo?
Saidel - Formalmente talvez não tenha muita coisa a ver entre a Companhia Silenciosa e o Mayenburg. Vendo o espetáculo tem, porque a gente daí revestiu com o nosso estilo, mas lendo o texto, o que mais nos aproximou foi a questão do tema e da ironia, de coisas que são ditas mas não sãos, os subterfúgios... Só que formalmente costumamos ir por um sentido oposto. A gente trabalha com esses temas escapando um pouco da relação com os personagens miméticos.


Já o texto cai direto nisso, a ironia e a coisa está na relação dos personagens em si. Mas as duas propostas se tangenciam no ponto da crueldade, não uma crueldade artaudiana ou de sangue, mas numa crueldade nas pequenas coisas... No avacalhar um pouquinho com o outro, puxar o tapete, fazer umas brincadeiras para desestabilizar... E quando a gente lia o texto, a agente não acreditava: puxa, olha o que o cara está falando! Isso aqui é muito bom! Rolou uma identificação nesse sentido, do tema e do humor.

Mesmo sendo um texto super pesadão, ele tem uns momentos muito engraçados, que você dá uma descontraída. Tem muito humor negro.

Francofonia – Dá para considerar a peça uma tragicomédia?
Saidel – Não sei, porque tragicomédia me lembra uma coisa meio de costumes... É tão complicado definir isso, porque a gente vendo fotos e comentários das montagens alemãs, não se falava de comédia em nenhum momento. E nós achávamos tudo muito engraçado, tanto que eu te falei: lendo o texto, eu ria muito. Depois é que eu parei para pensar do que eu estava rindo. E isso aconteceu na leitura dramática também. Eu fiquei com medo, porque virou quase que um pastelão, a platéia rindo...


É engraçado como surge humor de coisas, situações, questões que a principio não deveria surgir humor. É tudo tão triste... Mas uma coisa que a gente luta a todo custo nos ensaios é também não fazer dessa peça um dramão.
Quando a coisa está ficando muito séria, eu já páro e digo: gente isso aqui não é um drama, vocês estão fazendo um dramão...


Francofonia – Sobre alguns aspectos da tua montagem: como surgiu a idéia de colocar, num dos momentos mais tensos da peça, a personagem Friederike falando através de um videokê?
Saidel – O videokê surgiu na leitura dramática [que a Companhia Silenciosa realizou no Teatro José Maria Santos na metade de 2005]. Afinal era uma leitura e tinha que se colocar o texto em cena. Mas foi também uma questão brechtiana, de mostrar que o que está sendo dito foi preparado antes, que aquilo é teatro, que isso aqui que está todo mundo achando engraçado ou chorando foi porque alguém mandou dizer. Daí o momento foi escolhido a dedo, que é a hora mais chorosa da peça, quando Friderike tenta se matar, toma os comprimidos. Então eu pensei: é aí que eu vou botar esse videokê!

Francofonia – Você acha que sem o videokê, sem esse distanciamneto, as pessoas iam ficar muito abaladas?
Saidel – Olha, me conhecendo e conhecendo o resto da Companhia, a gente não ia agüentar fazer uma coisa muito impactante nesse sentido. A gente ia acabar inventando alguma outra coisa, que também não fosse tão estritamente dramática. Mas é que o texto em si, caminha nessa hora para isso. Por exemplo, nessa hora eu não ri, lendo o texto. Eu fiquei sério alguns segundos e daí quando foi mais para o final da cena eu pensei: putz, que piegas isso! e já saí um pouco do sério.

Mas isso não é só no videokê. Tem vários elementos, a sonoplastia também vai muito forte nesse caminho [de quebrar o clima tenso]. As musicas acabam funcionando como um texto complementar, melodicamente e na letra. Quando a gente fez a pré-estréia da peça no então Teatro Edson Bueno, o diretor Marcio Abreu disse que gostou muito das músicas e que elas faziam pausas na peça. A coisa está indo e, de repente pára, dá uma respirada. Eu não tinha pensado nisso, mas segundo ele isso dava uma chance para os espectadores pensarem um pouco nas coisas que estavam acontecendo antes de seguir em frente. Eu achei isso interessante. As músicas tocam quase todas até o fim, e algumas tem cena em cima e outras não. Algumas vezes pára a cena, toca a música, continua a cena. É o caso do funk...

A musica quebra o ritmo e conversa com o texto. Ela caminha de forma paralela. A gente construiu as cenas primeiro e depois colocou a sonoplastia. Ela é mais um elemento significante na coisa toda.

Francofonia – E como surgiu a aula de alemão (em forma de gravação, que se escuta no início da peça)? Aquilo cria um efeito hipnótico...
Primeiro que ninguém sabe falar alemão. Eu pensei, putz, um texto alemão... vamos dar uma aulinha de alemão para as pessoas aprenderem, um primeiro contato com a cultura alemã (Risos). E também a peça já começa de cara com uma brincadeira. Para as pessoas pensarem: uma coisa assim não pode ser exatamente muito séria, uma aula dessas...

Francofonia - Sem contar que essa questão da aula de idioma tem a ver com teatro do absurdo, não?
Sim, a idéia da peça A Cantora Careca, do Ionesco, partiu de uma aula de inglês. Ele usou várias frases de um livro.


“Então eu chego pra Nina [Rosa Sá] e falo: Nina, você tem que fazer duas coisas nessa peça: você tem que andar por aí devagarzinho e chorar.”

Francofonia – Foi uma referência explícita a isso, ou não?
Saidel – Não, nesse sentido não. A intenção era mesmo assim: isso aqui é uma aulinha, aprendam algumas coisas. Coisas que vocês devem saber antes...

Francofonia – Para a encenação, você criou um personagem que não existe no texto original: “O espírito da Alemanha que chora”. Por que e o que ele representa?
Saidel – isso reflete várias coisas. Primeiro é um pouco da minha relação em ter um texto fechado. Eu pensei, puxa, tem que ter uma coisa minha aí pra brigar com isso, né. (Risos). Tem que furar isso de alguma maneira. Esse embate com o texto foi o que norteou a coisa. E daí no texto havia milhares de rubricas dizendo assim: choro; caem lágrimas. Em quase todos os personagens e em vários momentos, o que eu cortei. Aí o que a gente fez: pegou todo aquele choro e botou numa figura só. Então eu chego pra Nina [Rosa Sá, atriz] e falo assim: Nina, você tem que fazer duas coisas: você tem que andar por aí devagarzinho e chorar.

Na verdade eu disse: você vai chorar e picar lenha. Que a idéia era ela ficar picando lenha ao longo da leitura dramática, enquanto chorava. Só que daí acabamos deixando a parte da lenha para o final. Mas então ela serve para condensar, catalisar todo esse lance do choro, da pungência, do sentimento. Ela é a única que não tem quebras nisso. Ela começa e vai. Tanto que até o andar dela é mais deslizante, ela aparece nuns cantos...

Bom, então assim surgiu o personagem. Depois eu tinha que dar um nome para ele. E aí como é que eu ia colocar no programa? Então fiquei pensando e me veio assim: “O espírito da Alemanha que chora”, meio de brincadeira, e acabou ficando.

Francofonia – Mecânica, a última peça da Companhia Silenciosa, e o El Murciélago Desenfrenado, leitura dramática que vocês apresentaram recentemente, eram um tanto quanto abstratas, complexas. Comparando com esses trabalhos, Parasitas é uma peça mais simples, mais acessível ao grande público?
Saidel - Eu acho que é. Mas não que seja uma peça mais simples. O fato de ser mais parecido com outras coisas, estruturalmente, principalmente essa questão dos personagens – são duas famílias –, proporciona uma identificação. Eu acho que é mais simples nesse sentido. Cronologicamente, ela também é mais linear. Ela parece mais simples por causa disso. Ela parece mais teatro no senso comum do termo, e nesse sentido ela é mais próxima do grande público.

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