1 de abr. de 2007

Os clichês passam longe daqui
Com muita criatividade, o diretor André Paes Leme utiliza os recursos épicos para aproximar o espectador ao texto de Guimarães Rosa
Vladimir Brichta encarna Augusto Matraga.
A Hora e a Vez de Augusto Matraga, que se apresentou no Teatro da Reitoria no dia 27, é daqueles espetáculos raros em que, ao seu término, todos saem de alma lavada, com a certeza de que existem sim, verdadeiras obras primas no teatro.
É impressionante a eficiência dessa montagem. A começar pelo elenco enxuto, apenas 9 pessoas, que se revezam tanto como atores, narradores, sonoplastas e músicos. E todos, sem distinção, trabalham muito bem.
Dá até raiva. Eu me perguntava: como é que pode, todo mundo atuar desse jeito e ainda cantar e tocar sempre afinado? E essa parte musical, coordenada por Alexandre Elias, não é brincadeira. Há músicas do começo ao fim, executadas com uma porção de instrumentos, como violões, acordeom, zabumba, gaita, calimba...
Depois vem a eficiência do cenário e dos elementos cênicos. Todos os objetos, bastante rústicos por sinal, são reduzidos a formas essenciais e também multifuncionais.
Um carro de boi não é só um carro de boi, mas também vira uma cama, uma casa, e muitas outras coisas. As armas usadas pelos cangaceiros, por exemplo, não são armas reais. São ossos, com formatos que lembram armas convencionais. Ou não.
A luta final entre Augusto Matraga e Joãozinho Bem-Bem é feita com crânios de boi, crânios que também ficam pendurados em bambus pelo palco, e que com a luz projetada sobre eles, formam sombras fantásticas.
Isso só para ilustrar como na montagem há uma riqueza de detalhes muito grande, e que deixa qualquer espectador pasmo. E vale lembrar que todos esses recursos, sumariamente descritos aqui, estão inteiramente a serviço do texto de Guimarães Rosa.
Um texto que, todos sabem, não é fácil de se penetrar num primeiro momento. Nada fácil, igualmente, é adaptá-lo para o teatro. Afinal este conto presente em Sagarana é acima de tudo narrativo, e essa estrutura foi mantida pelo diretor André Paes Leme, que se manteve fiel à obra.
A questão é que, a narração, que num teatro brechtiano, por exemplo, geraria distanciamento entre o espectador e o que é apresentado, sob a direção de André, torna-se drama, ação também.
Nesta A Hora e a Vez de Augusto Matraga, o ator quando narra, o faz com uma rica linguagem corporal, e também com entonações das mais variadas. Sem falar que a narração também faz uso de canções, criadas a partir do próprio texto.
O único problema é que, tudo isso, ao mesmo tempo em que é muito atrativo para o público, no começo parece dinâmico demais, muito rápido. Difícil de se apreender.
Confesso que, até a parte em que Augusto Matraga leva a coça dos capangas do Major Consilva, eu não estava entendendo patavinas do que era dito. E a culpa não era dos atores, que apresentaram uma boa dicção. Simplesmente eu ainda não tinha conseguido “entrar” no texto e na história.
Mas justamente nesse momento decisivo, um dos ápices da peça, é que tudo mudou, pelo menos pra mim. Porque numa cena em que muito provavelmente outros diretores fariam com que Matraga apanhasse de forma realista, André colocou os jagunços batendo violentamente numa peça de carne.
Vladimir Brichta, que interpretou Matraga, ficava apenas num canto encolhido, sofrendo virtualmente os golpes. Quer dizer, ao invés de apresentar uma cena brutal, que todo mundo já está acostumado a ver, André Paes a transformou numa cena cômica, inusitada.
Em meio às gargalhada, um homem ao meu lado ainda perguntou: “Isso é carne mesmo?” E apesar de engraçada, a cena não ficou menos contundente, pois você sabe que o personagem está sofrendo.
E o mesmo aconteceu quando Matraga é marcado a ferro, como gado. Um ator então surge com uma frigideira quente, e joga nela um bife. Barulho e cheiro de carne queimando. Brichta grita de dor. O público vai ao delírio.
A partir daí, não tive como não ser fisgado pela peça. Tudo era tão vivo, tão interessante, que meus ouvidos finalmente se “abriram” ao idioma roseano.
A partir de então eu compreendia tudo. De queixo caído.
*
Uma guerra que precisa voltar à cena
Companhia Silenciosa apresenta a leitura dramática de Jesus vem de Hannover no Festival de Teatro de Curitiba

Além de ter encenado a inquietante Mecânica neste Festival de Teatro de Curitiba, a Companhia Silenciosa forneceu uma bela amostra de um espetáculo que está por vir, com a apresentação da leitura dramática de Jesus vem de Hannover, que aconteceu no dia 28 de março, no Teatro Experimental da UFPR (TEUNI).

Nesta leitura, mais do que colocar atores sentadinhos diante de uma mesa (como costumam fazer algumas companhias, sem apelo cênico algum) para declamar a dramaturgia de Léo Glück, o diretor Henrique Saidel optou por ir um pouco mais além.

Primeiro, dispondo os atores entrincheirados nas aberturas subterrâneas do palco do TEUNI. Assim, em seu pequeno bunker, cada ator vestia um óculos divertido, mais uma camiseta com o nome de seu personagem estampado e, finalmente, tinha em mãos o texto de Glück, que seria a munição para a guerra que estava prestes a começar.

Uma trilha sonora marcial, de filmes como A ponte do rio Kwai, também já dava o tom beligerante, que iria contrastar com a pose burlesca dos atores e suas falas.

A leitura logo se mostra uma espécie de jogral nonsense entre os bizarros e sumários personagens de nome Harold, O Furão, Mimi, Merga, A Maníaca, e o protagonista Montgomery Marcelino Jesuíno de Jesus.

Os seis travam então uma série de diálogos curtos, inusitados e desnecessários, isso se alguém ainda esperava por uma história com um sentido fechado e evidente.

Frases do tipo “Dizem que massagem nos seios evita o câncer”; “Você é um Cyborg?”; “O Renascentismo era uma putaria franciscana”, cruzam o palco e voam em direção à platéia como balas perdidas, ou melhor, “frases perdidas”, provocando as mais diversas reações no público.

Há quem ria frouxo com as piadas ácidas da Companhia Silenciosa, há quem ria envergonhado dos chistes politicamente incorretos – como quando dizem que é impossível de se preparar um x-salada chinês em casa, visto a imundície ser irreproduzível –, há quem ria amarelo por não ter compreendido as inúmeras tiradas irônicas, e há quem torça o nariz para toda essa verve inconseqüente.
Ao mesmo tempo, é difícil que alguém não tenha esperado por um maior esclarecimento sobre o intrigante personagem que leva o nome de Jesus. Esclarecimento que obviamente não surge nunca, porém gera uma saborosa tensão ao longo da peça.

Nada a ver com o messias de Belém, o Jesus de Léo Glück vem não só de Hannover como também das terras de Samuel Beckett e de todo o teatro do absurdo.

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