28 de ago. de 2008

Entrevista)))
“Expurgamos a nós mesmos”
Fotos: Franco Fuchs

Diretor de Árvores Abatidas, Marcos Damaceno (foto) fala sobre a repercussão da peça em Curitiba.

Na estréia de uma montagem já é possível saber se um trabalho tem ou não potencial de seguir adiante, conta o diretor Marcos Damaceno. Com Árvores Abatidas, o diretor logo sentiu que a peça teria uma continuidade.

Porém, novas apresentações dessa adaptação (até então inédita) do romance de Thomas Bernhard irão demorar um pouco, explica ele. De outubro a novembro, a sua companhia tem agendada reapresentações da peça Sonho de Outono, do norueguês Jon Fosse, em São Paulo e no Rio de Janeiro.

A idéia é que Árvores Abatidas retorne aos palcos no início de 2009, no próximo Festival de Teatro de Curitiba, avisa Damaceno.

Na entrevista a seguir, o diretor fala de aspectos polêmicos da primeira temporada de Árvores Abatidas e relata como foi a repercussão dessa “bomba” na cidade.


*

Francofonia - Como foi o encontro com o romance de Thomas Bernhard e o estalo de que ele poderia ser transformado em peça? A sua adaptação é mesmo inédita?
Marcos Damaceno - Pelo que pesquisei sim. Até que provem o contrário, é a primeira montagem do romance.

Eu tinha ouvido falar muito do Thomas Bernhard na faculdade, já conhecia o romance O Náufrago, e algumas pessoas haviam dito que o que eu fazia era parecido com o Thomas Bernhard.

Em 2004, estive em um encontro latino-americano de novos dramaturgos em Córdoba. E lá, um dramaturgo espanhol chamado Paco Sarzozo, que era o coordenador do evento, me disse que o que eu escrevia, pela musicalidade, pela construção das frases, era muito próximo ao Thomas Bernhard.

Na verdade, o Paco me indicou dois autores que eu acabei montando. O Thomas Bernhard e o Jon Fosse, que era um cara que estava começando a estourar em 2005.

Quando voltei para o Brasil, montei primeiro o Fosse [Sonho de Outono] e depois resolvi adaptar o Bernhard. Não optei por uma peça de teatro dele porque as suas peças costumam ter homens mais velhos e eu queria muito fazer um solo com a Rosana [Stavis, atriz, esposa de Marcos Damaceno]. Vi essa possibilidade através do Árvores Abatidas.

Francofonia - A montagem de Árvores Abatidas virou na maior parte do tempo uma comédia. Isso foi intencional?
Damaceno - Seguimos alguns caminhos nos primeiros ensaios até encontrarmos o tom geral do espetáculo. O primeiro mês foi só para achar esse tom. E quando vimos que estava ficando muito sério, afinal o protagonista está sempre criticando, falando mal dos outros, ficamos com medo dele ficar arrogante demais. Então buscamos o humor para tentarmos criar uma empatia maior entre a platéia e a narradora.

Francofonia - Esse humor não foi um tanto exagerado?
Damaceno -Temos que lembrar que o exagero é uma característica do próprio Thomas Bernhard. Exagero na linguagem, pela repetição de palavras e frases, e também pela caricatura que ele faz com os personagens quase estereotipados.

Isso causa bastante humor. Os personagens não têm um desempenho naturalista, uma voz naturalista. O Auersberger, por exemplo, é o bêbado. E se ele era para ser o bêbado, o deixamos ainda mais bêbado.

O estereótipo no teatro normalmente é algo depreciativo. “Ah, esse ator está meio estereotipado ou caricato...” Mas aqui buscamos justamente isso, seguindo o Thomas Bernhard, na nossa visão.

Francofonia - Na sua adaptação você deu um novo sentido para o título de Árvores Abatidas. Por quê?
Damaceno - Lendo o romance, você fica esperando o tempo por uma explicação sobre o título e quando ela chega – tudo bem que não sabemos como é no original em alemão –, parece que não é tão significativa.

O ator do Burgtheater fala rapidamente que ele queria entrar na floresta e ser ele a própria natureza. [“Bosque, floresta, árvores abatidas”, diz ele].

Então demos um outro significado para isso, porque ficava claro para nós, enquanto ensaiávamos, que a Joana era uma árvore abatida e as outras pessoas também eram como as árvores da cidade que, quando cresciam demais e começavam a ficar frondosas, eram podadas.

Francofonia - O protagonista de Árvores Abatidas fala muito mal dos artistas que não deixaram Viena. Ficar na cidade ou sair dela é uma questão que sempre passa pela cabeça de todo artista curitibano, não?
Damaceno - Não há mal nenhum em ficar aqui. Curitiba tem fama de ter bons atores, tem uma tradição teatral forte. Mas há sempre esse discurso de que é preciso ir para São Paulo e Rio de Janeiro porque essas cidades continuam sendo os principais centros culturais.

E tem aquela coisa. Se você é o melhor ator de São Paulo, você não é simplesmente o melhor ator de São Paulo. Você é o melhor ator do Brasil. Agora se você é o melhor ator de Curitiba, você é só o melhor ator de Curitiba.

Então todo mundo busca sair. Inclusive nós, que temos procurado ir com nossos espetáculos para São Paulo e Rio, justamente por essa amplitude que você dá para a sua carreira, essa visibilidade.

Francofonia - Será que essa situação não está mudando, de que um artista bom em Curitiba é apenas bom aqui? Na literatura, por exemplo. Há quem diga fora daqui que o maior contista brasileiro vivo é o Dalton Trevisan...
Damaceno - Talvez de tanto se falar que Curitiba é uma província, que Curitiba não se valoriza, sinto que existe agora um movimento contrário. Inclusive de as pessoas montarem mais autores locais, mesmo que sejam adaptações literárias.

Por exemplo, estão montando aqui no Teatro Novelas Curitibanas uma peça a partir de O Mez da Gripe, do Valêncio Xavier. E também se montam contos do Dalton Trevisan o tempo todo. Aliás, já até se fala que o Dalton é o maior dramaturgo curitibano.

Acho que as pessoas estão se preocupando mais com uma identidade curitibana, paranaense, ou sei lá, sulista. Até a minha companhia mesmo. Por mais que a gente tenha montado Thomas Bernhard, a discussão é toda sobre o nosso meio e a nossa cidade.



"E tem aquela coisa. Se você é o melhor ator de São Paulo, você não é simplesmente o melhor ator de São Paulo. Você é o melhor ator do Brasil. Agora se você é o melhor ator de Curitiba, você é só o melhor ator de Curitiba."

Francofonia - O subtítulo do romance Árvores Abatidas (na tradução de Lya Luft) é “uma provocação”. O Thomas Bernhard chegou a ser processado por provocar pessoas reais no livro, não?
Damaceno - Sim. O Thomas Bernhard realmente conviveu com as pessoas descritas no livro. Todas eram reais. A única coisa que ele fez foi alterar o nome do [Gerhard] Lampersberger, que ele colocou no romance como Auersberger.

A gente viu fotos do Lampersberger, fotos da Joana... O Lampersberger era um músico que compunha com o Bernhard. Eles faziam coisas para o palco juntos e depois romperam.

Quando o Thomas Bernhard lançou Árvores Abatidas, o Lampersbereger leu e falou: “espera aí, esse sou eu!” Não há dúvida. E como ele é esculhambado no romance, ele conseguiu proibir a venda do livro.

Depois de alguns anos é que Árvores Abatidas pôde ser publicado na Áustria. Mas aí o Bernhard, um sujeito difícil, escreveu um testamento no qual proibia a publicação e a encenação das suas obras em território austríaco, após a sua morte.

Isso aconteceu mesmo, por um tempo, depois que ele morreu. Mas um meio-irmão do Bernhard conseguiu dar um jeito de derrubar essa decisão judicial e hoje ele é publicado, montado e reverenciado em toda a Áustria.

Francofonia - Na peça, tal como o Bernhard, você cita nominalmente alguns artistas conhecidos. A escritora Jeannie, por exemplo, é às vezes chamada de Nena (em referência à diretora e produtora curitibana Nena Inoue). Em certo momento ela fala que o único dramaturgo bom é o Felipe (em referência ao diretor e dramaturgo Felipe Hirsch) e ambos, Jeannie-Nena e Felipe, terminam detonados pelo ator do Burgtheater. Como foi a reação das pessoas citadas?
Damaceno - Fizemos essas citações justamente para manter esse espírito provocador do Thomas Bernhard. Na verdade não colocamos tanto opiniões nossas. A gente adora o Felipe Hirsch, por exemplo. Assisti ao Não Sobre Amor e achei lindo, a melhor coisa que vi dele.

Mas a gente retrata o nosso meio. Falamos o que as pessoas falam. Em Curitiba existem essas relações de amor e ódio. O Felipe é um caso. Ele é daqui, mantém um escritório na cidade, e as peças dele não vêm para cá. Ele só fala mal de Curitiba, fala mal dos atores, que eles são vagabundos, preguiçosos. Isso até já virou uma guerra: o Felipe fala mal da classe artística e a classe artística fala mal do Felipe.

Francofonia - E quanto à Nena?
Damaceno - Eu tenho uma relação diplomática com ela. Mas ela também não veio na peça. A gente esperou, esperou, mas ela não veio. Parece que a Nena mandou algumas pessoas assistirem para depois contar para ela. Mas o que está lá é o que todo mundo acha da Nena e ela até sabe que todo mundo acha isso.

Francofonia - E como foi a reação das demais pessoas da classe artística?
Damaceno - Da classe teatral o comentário que mais ouvimos foi: “poxa, vocês são corajosos, hein?” Eles se deleitaram. Como diz o narrador no final de Árvores Abatidas, tudo o que todos sempre quiseram falar, mas nunca falam, o ator do Burgtheater falou.

E alguns se identificaram. A Carmen Jorge [diretora, coreógrafa e performer] disse: “nossa, a Joana [que não sabia se queria ser bailarina ou atriz e depois virou coreógrafa] sou eu!” A diferença é que a Carmen Jorge não se suicidou, mas enfim, ela levou na esportiva e não se ofendeu.

Agora muitos também ficaram numa posição cômoda de achar tudo engraçado, mas no final diziam que não era com eles.

Francofonia - Outro aspecto interessante da peça foi mostrar como a autofagia, que pensamos ser uma característica tipicamente curitibana, também aparece em outras cidades como Viena.

Damac
eno - A autofagia não é uma peculiaridade só de Curitiba. Talvez nas megalópoles, com São Paulo, isso se dilua um pouco. Mas nas cidades que são do porte de Curitiba a autofagia é algo comum.

Numa leitura dramática que fizemos de Árvores Abatidas, uma menina que era de Belém depois me disse: “nossa, durante toda a leitura eu pensei que vocês estivessem falando de Belém!”

Então pessoas de outras cidades também vestiram a carapuça. Isso é bom, porque não queremos que a peça seja tão curitibana que só sirva para nós, até porque pretendemos viajar com esse espetáculo para outros lugares.

Francofonia - Thomas Bernhard, Jon Fosse, Sarah Kane. Pensando nesses autores que você já montou e também lembrando da peça Sobre Tempos Fechados que você escreveu, percebe-se que você tem um apreço por autores e personagens tristes, sorumbáticos, pessimistas, não?
Damaceno - As pessoas falam que montamos peças muitos pesadas, densas, difíceis. Mas essas peças me instigam, me atraem porque aprendo com elas.

Árvores Abatidas, por exemplo, foi uma reflexão para nós, sobre como se dão as relações entre as pessoas, principalmente as relações entre os artistas de uma cidade como Curitiba. A gente aprende muito. Aprende o que não cometer e como não se transformar nessas pessoas ressentidas. Sempre que se reúnem pessoas cai-se nessa amargura. Um falando mal do outro, essa mesquinharia que na verdade faz parte de tudo quanto é área.

E com Árvores Abatidas expurgamos a nós mesmos. Eu até falo: vamos falar mal de tudo o que tiver que falar. Vamos expurgar isso, para que a gente não guarde esses sentimentos que depois acabam dominando a nossa mente e não nos levam a lugar nenhum.

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