11 de abr. de 2008

Entrevista)))
Ela é a mãe de “Jesus”

Ou melhor: criadora do personagem
Montgomery Marcelino Jesuíno de Jesus
Foto Alessandra Haro

Confira a entrevista com a dramaturga Léo Glück (foto), autora da polêmica peça Jesus vem de Hannover

No mês de fevereiro, inúmeros cartazes com a inscrição Jesus vem de Hannover começaram a surgir em paradas de ônibus pela cidade. Uma porção de gente ficou intrigada. Seria uma mensagem de alguma igreja neopentecostal?

Uma análise mais acurada mostrava que não. Era apenas o nome de uma peça da dramaturga Léo Glück, e que foi encenada, com a direção de Henrique Saidel, pela Companhia Silenciosa (grupo mantido por Léo, Henrique e mais Giorgia Conceição).

Desde a sua estréia no Teatro Novelas Curitibanas, Jesus... dividiria opiniões e seguiria causando polêmica ao se apresentar também na mostra Fringe do Festival de Curitiba.

Na entrevista a seguir, a dramaturga Léo Glück – que também atuou na peça – rebate críticas, esclarece alguns temas explorados na montagem e revela um pouco do seu processo criativo como escritora.

*

Francofonia – Dois jornalistas na mídia curitibana chamaram o espetáculo de vocês de amador. O que você tem a dizer a essas pessoas e sobre isso?
Léo Glück – É falta total de referência. Todos têm o direito de não gostar e até de odiar o espetáculo. Mas daí a não enxergar o básico, já é falta de fontes, sabe? Imagine: disseram que o figurino era improvisado! Eu não entendi uma colocação assim. Ficou parecendo birra.

Eu posso não gostar de algumas peças, mas consigo também reconhecer se elas têm qualidade técnica ou não. Por isso acho que esses comentários foram feitos por gente completamente despreparada. Mas o Nelson de Sá, gente que realmente importa, falou bem da peça no blog Cacilda [da Folha de S. Paulo]. Pelo menos ele é abalizado.

Francofonia – E como estão sendo as reações do público em relação à peça? [A entrevista aconteceu no período do Festival de Curitiba]
Glück – No Festival tem bem menos gente vendo porque a concorrência é grande e, às vezes, desleal. Mas muita gente adora e se diverte (leigos, em geral), enquanto outros saem odiando.

Francofonia – Você se sente uma incompreendida com os seus textos?
Glück – Sinto me incompreendida inúmeras vezes. Mas não me importo com isso. Um espetáculo (a arte, em geral) não serve para "explicar" nada. E se tem gente que tem isso como expectativa, que pena. Vão se frustrar cada vez mais.

Francofonia – Como surgiu o texto de Jesus vem de Hannover?
Glück – Faz uns dois anos e meio que escrevi a peça. Sentei na frente do computador, com tudo ligado: som, televisão, e a escrevi em algumas horas... Em cinco, acho.

Francofonia – Você chegou a mexer no texto depois? Costuma reescrever suas peças?
Glück - Não mexi em nada. Não gosto de mexer nos textos depois de "prontos". A não ser que seja uma necessidade específica da montagem. Mas Jesus... não sofreu nenhuma alteração.

Francofonia – Bem, mas de onde nasceu a idéia de criar esse controverso personagem-título, e por que fazê-lo vir especificamente de Hannover?
Glück - A idéia do título eu tive antes de escrever a peça, tomando café num bistrô. Gosto de anotar títulos que acho interessantes. Tenho várias peças inéditas que foram escritas assim, a partir do título, como The Mango Tree, Stoccarda, Linda Blair Entra Na Sala, Fellatio...

Francofonia – Você imaginava que esse título ia deixar as pessoas assim tão instigadas? E que ele seria uma espécie de pegadinha?
Glück – Não, mas da maneira que foi feito o "marketing" em torno do espetáculo, acabou causando isso. É pretensão das pessoas achar que o Jesus é Cristo. Porque ninguém pensa que pode ser outra coisa, que pode ser um sobrenome, como é, aliás.

Francofonia – E quanto aos nomes de Saddam e Napoleão que são mencionados na peça? Eles são quem pensamos?
Glück – Esses são! É ironia, na verdade. Megalomania.

Francofonia – Você pensou em discutir ideologias com a sua peça?
Glück – A ideologia da bandeira esfarrapada, talvez?



"Um espetáculo (a arte, em geral) não serve para 'explicar' nada. E se tem gente que tem isso como expectativa, que pena. Vão se frustrar cada vez mais."

Francofonia – Num primeiro momento, não consegui identificar muitas questões ideológicas sendo discutidas, como algumas pessoas identificaram. Particularmente, vi sim um monte de piadas...
Glück – São várias as questões ideológicas, em minha opinião (embora a minha opinião não seja em nada definitiva). Eu só não acredito que tomar partido seja a melhor maneira de se interpretar qualquer ideologia. E isso está em todos os nossos trabalhos. É realmente uma pena que você só enxergue piada ali. Sempre tentamos dar vez ao microcosmo para falar de assuntos mais "globais". Senão vira panfleto, engajado e "politicamente correto".

Francofonia – Você acha então que Jesus... chega a ser uma peça política e não uma peça trash sobre ciborgues?
Glück – Acho que esta é a peça mais política que já fizemos. Não é uma peça sobre ciborgues. Acho que se trata mais de uma alegoria sobre como estamos sendo invadidos por sistemas não-humanos. Você já foi ao banco e a máquina te disse: "Sistema fora do ar"?

Francofonia – É verdade que a peça aborda a questão da desumanização. Mas talvez essa e outras questões importantes fiquem um tanto ofuscadas pela quantidade de informação que vocês nos bombardeiam... Numa saída da peça, ouvi pessoas dizendo que estavam boquiabertas, perplexas com aquilo tudo.
Glück – Entendo... Mas não confunda 'quantidade de informação' com 'piada'...

Francofonia – Mas as piadas fazem parte dessa massa de informações. Ou não?
Glück – Mas nem chega a ser uma parte tão grande assim... E talvez o que você queira dizer com piada seja o invólucro com o qual a informação está embalada.

Francofonia – Outra coisa que ouvi de algumas pessoas é que a presença de inúmeras digressões absurdas na peça – à la Quentin Tarantino – também causa um certo incômodo. Afinal é todo um discurso que não leva a nada...
Glück – Não temos digressões a valer na vida? Por que não podemos ter na arte? Ou sua vida é dividida cartesianamente em atos? Muita coisa não leva a nada. Acho que Jesus... nem pretende levar ninguém a nada. Reflexão é exercício.

Francofonia – Talvez as pessoas sintam falta de encontrar algo mais profundo na peça...
Glück – Mas se elas não ouvem nada de profundo ali, que fujam loucas! Você acha que não tem? Há uma parte do texto, que é a minha preferida. Está na cena chamada "Desejos Glaciais". Se você não percebe o sentido disso, falhou em tudo...

Francofonia – É quando os aquecedores presentes no teatro são ligados?
Glück – Sim, sim... Calor humano artificial... Aquecimento global... “Seremos substituídos por robôs!” [diz uma das falas na cena]

Francofonia – E sobre a influência do futurismo (o movimento artístico europeu do início do séc. XX)? O futurismo valorizava a guerra, a máquina, a juventude, a velocidade... Isso tudo está muito presente na peça, não?
Glück – Sim, tem tudo isso... Fugacidade, efemeridade. E amor! O futurismo, junto com dadaísmo, é uma das nossas referências, com certeza. Mas esse futurismo também aparece com cara de "ideologia fracassada do passado" às vezes.

Francofonia – Você acabou de falar em “amor”, mas onde ele está na peça?
Glück – Não está. É sobre isso que falamos.

Francofonia – Há mais alguma coisa que você queira dizer sobre Jesus...? Você crê nele?
Glück – Acho que eu mesma não creio em Jesus nenhum!

Francofonia – Tem alguma religião?
Glück – Tenho um lado espiritual independente de religiões...


*Publicada na Revista Idéias nº78

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