25 de set. de 2007

Entrevista César Almeida/ Parte 1: Origens



Francofonia - Onde você nasceu? Quando começou a fazer teatro e como veio parar em Curitiba?
César Almeida - Eu nasci em Londrina. Eu comecei a fazer arquitetura na Uel, fiz dois anos, e aí um amigo meu me convidou para fazer uma peça de teatro. A partir do momento que eu descobri esse universo do teatro, pra mim foi mágico. Decidi que era aquilo mesmo que eu queria. E daí larguei a faculdade e vim para Curitiba estudar teatro. Foi tudo muito rápido. Eu digo assim que foi um momento astrológico meu muito engraçado e interessante.

Francofonia - Momento astrológico?
Almeida - É, eu acredito em astrologia. Eu tenho que dizer: não é que eu não acredite em nada, eu acredito em astrologia.

Francofonia - Sério?
Almeida - É sério. Eu acho que é uma ciência despretensiosa, e que alguém criou há muitos milênios. Ela não nasceu do nada. Ela tem bases mais sólidas do que a gente imagina. Mas também tem gente que não acredita. Tem gente que não acredita que o homem foi pra lua até hoje...

Francofonia - Você chega a fazer mapa astral, essas coisas?
Almeida - Sim, sim, tudo. Bom, então comecei a fazer teatro aqui. Já logo montei a minha primeira peça [Aceitam-se encomendas de vestidos de noiva], que era uma peça extremamente gay. E aí fui chamado pela diretora do grupo [o Curso Permanente de Teatro (CPT) promovido pelo Teatro Guaíra], na época, que me pediu para que eu não colocasse o nome da escola. Ela queria que a peça ficasse como se fosse montada por um grupo independente.

Francofonia - E quem era a diretora do CPT?
Almeida - A Ivone Hoffmman. Mas foi muito legal porque a peça foi super bem recebida, a gente participou de festivais, viajou pelo interior. As pessoas queriam, as pessoas precisavam, eu sentia a necessidade de se ter uma arte gay mesmo, uma arte que manifestasse o que as pessoas estavam querendo ver naquele momento, e era muito difícil você ver uma obra de arte gay em 1982. Isso não era nada discutido na época.

Francofonia - Mas e no final, o Teatro Guaíra assinou o espetáculo?
Almeida - Sim, obviamente que eu não ia deixar que ela... Nunca! Eu posso dizer que nunca me deixei abater por esse tipo de intimidação. Nunca mesmo. Aliás, até na peça Ardor 2 foi bem difícil ser levantado o dinheiro do patrocínio, porque os patrocinadores não queriam colocar o nome numa peça gay. Alguns até doaram dinheiro, mas não quiseram que o nome fosse colocado.

Francofonia - É engraçado, porque como isso poderia sujar o nome de uma empresa? Ao patrocinar um espetáculo gay, só mostra que ela está sendo mais tolerante, mais politicamente correta. É uma coisa até anticapitalista, porque a empresa deixa de ganhar um público.
Almeida- Pra você ver como ainda é tacanha a mentalidade do empresário. Pra você ver como Curitiba é. A cidade ainda tem esse ranço que é complicado, e talvez a gente nunca vá perder.

Francofonia - Mas, com tudo isso, por que você decidiu fazer teatro em Curitiba? Você já pensou em fazer teatro em outro lugar?
Almeida - Por isso que eu te digo, foi um momento astrológico muito louco. Quando vim pra Curitiba, eu vim por amor, talvez movido pelo amor ao teatro, mas primeiro foi o amor mesmo, que entrou na minha vida. Foi o primeiro romance que eu tive e aí vim morar em Curitiba.

Francofonia - Ele era daqui?
Almeida - Era. Então foi uma coincidência feliz de casar essa história da escola de teatro e esse meu romance.

Francofonia - Ele fazia teatro também?
Almeida - Não, ele era agrônomo. Então quer dizer, foi uma confluência muito grande de fatores e, de repente, a minha vida deu uma guinada e eu acabei parando aqui em Curitiba. Eu acho que Curitiba é uma cidade confortável de se morar, urbanisticamente falando. Tem uma qualidade de vida bacana. Agora, a mentalidade é difícil. É uma cidade muito retrógrada, muito jacu. É uma cidade caipira mesmo. As pessoas tem uma mentalidade muito simplista de ser. Do tipo, o certo é isso: ser católico, ter uma família heterossexual. É uma cidade muito TFP: tradição, família e propriedade. E uma cidade pequena, que todo mundo sabe da vida do outro. Essa coisa de compartilhar muito a informação da vida íntima dos outros acaba virando um empecilho para que a mentalidade de expanda um pouco mais.

"Sempre tive esse meu lado rebelde que eu colocava pra fora, mas discretamente. E aí a partir do momento que eu me descobri, que eu descobri que a minha sexualidade era essa, e que eu não ia mais suportar mais isso, para mim foi muito natural dizer um não para tudo."

Francofonia - Você já pensou em morar em outros lugares?
Almeida - Depois que eu terminei a minha escola de teatro aqui eu fui morar em Londres. Morei um ano, aí vi que ia ser impossível fazer teatro lá...

Francofonia - Não tinha abertura?
Almeida - Não tinha. Ser estrangeiro é muito difícil. É uma tarefa que te consome todo o teu gás. Eu acho que se eu ficasse lá, talvez em 10, 15 anos, eu começasse a fazer alguma coisa. E eu não tenho paciência para esperar esse tempo. Aí voltei pro Brasil. Tentei morar em Porto Alegre, tentei morar em São Paulo. Não me adaptei e acabei voltando pra cá. É uma cidade que tem um padrão de vida bacana, mesmo pra quem não tem uma profissão muito... correta, digamos assim.

Francofonia - Você se considera um curitibano hoje?
Almeida - Eu me considero bastante curitibano. Hoje até defendo muitas coisas que o curitibano tem, de ser um pouco mais reservado, mais fechado, mais precavido com as pessoas do que o restante do Brasil. Eu acho até uma qualidade. Não vejo mais como um defeito. Mas ao mesmo tempo a gente tem uma política muito tacanha, uma política de estado. Pelo menos a política cultural do município eu acho bem legal. Ela ainda é democrática o suficiente para atender vários típicos de manifestações artísticas.

Francofonia - Na época em que você morava em Londrina, você tinha algum contato com o teatro que era feito lá?
Almeida - Não, pois quando eu comecei a ter esse contato foi quando eu saí de lá. Foi uma experiência super rápida e, assim, tipo, cresci vendo os trabalhos da Nitis Jacon, que na época era uma artista, que eu digo que hoje em dia já não é mais... Então era uma época de muita efervescência cultural. Tinha a Nitis, o grupo Delta, que era um grupo super forte. Na música tinha o Itamar Assumpção, o Arrigo Barnabé... E hoje Londrina está uma pobreza.

Francofonia - E o Mário Bortolotto?
Almeida - Cheguei a conhecer, vi algum trabalho dele, mas o Mário quando começou a produzir eu já morava em Curitiba. Então não acompanhei muito de perto. Mas é uma criatura que também batalha por uma obra autoral, uma obra que tem a ver com o que ele acredita. Acho isso muito legal da parte dele. Mas hoje em dia não consigo ver mais ninguém lá que você diga, oh, isso é bom de ver.

Francofonia - E como era a relação com a tua família em Londrina? Eles te incentivavam a ser artista?
Almeida - Sim, sempre me incentivaram. Mas a partir do momento em que eu resolvi assumir a minha homossexualidade, largar uma faculdade a qual eles imaginavam que eu ia ter algum futuro, então foi uma relação muito tensa. E a partir desse momento eu já sabia que eu ia sair fora, que eu ia tocar a minha vida da minha maneira. Foi muito complicado para eles. Eu nunca fui tão feliz na minha vida.

Francofonia - Você ainda mantém contato a família?
Almeida - Sim. Mas a gente levou muito tempo para reatar a nossa relação. Uma relação que nunca tinha sido boa, na verdade. Sempre foi uma relação de aparências. Eu sempre cobrei que eu queria uma relação mais profunda com eles, que eu nunca tive. Eram pessoas que não conseguiam externar seus sentimentos e isso pra mim é uma coisa essencial. Eu não consigo ver uma relação de verdade.

Francofonia - Mas como era a sua família? Você teve pai, mãe...
Almeida - Sim, era uma família estável, toda certinha. Meu pai era representante comercial, não foi uma pessoa que teve escolaridade. Minha mãe, professora de português, sempre me incentivou muito à leitura, a gostar da cultura.

Francofonia - Você tem irmãos?
Almeida - Tenho um irmão e uma irmã. Eu sou o irmão mais velho, então a responsabilidade era maior. Eu ia ser o primeiro rebento deles a florescer e de repente quando eles vêem, esse filho se revolta, sai fora... Foi bem difícil para a cabeça deles. A gente ficou muito tempo sem se falar. Isso numa época em que eu precisava muito do apoio deles, que eu não tive. A gente se privou de ter uma convivência mais estreita. Mas também acho que é natural, sabe. Cada um leva a vida como pensa. Eu também não interferi na vida deles assim como eu não queria que eles interferissem na minha. Mas ainda bem que eu consegui dar esse passo relativamente cedo, senão acho que teria perdido muito tempo. Teria perdido oportunidades que o destino me proporcionava.

Francofonia - Nas suas peças você sempre faz questão de provocar, seja os políticos, a igreja, o público ou a própria classe teatral. Você sempre foi um sujeito corajoso desde pequeno? Quando você começou a se impor?
Almeida - Eu me eduquei pra isso, desde criança. Eu sempre prezei por isso. Ao mesmo tempo eu sempre tive uma educação muito repressora. Eu era o aluno certinho, nota 10, mas isso não me impedia de ser o mais bagunceiro, o mais displicente na sala. Sempre tive esse meu lado rebelde que eu colocava pra fora, mas discretamente. E aí a partir do momento que eu me descobri, que eu descobri que a minha sexualidade era essa, e que eu não ia mais suportar mais isso, para mim foi muito natural dizer um não para tudo. Eu não gosto de fazer coisas para as quais eu não nasci. Eu não conseguiria ter um emprego convencional, careta que estivesse me tolhendo. Eu não consigo. Então foi uma questão de opção de vida, de não querer me submeter a um sistema que eu sabia podre, desde pequeno. Eu já tinha essa noção que a sociedade não merecia que eu me deixasse escravizar, e assim eu levo a minha vida até hoje. Talvez seja a minha grande qualidade, não me vender a esse sistema.

Francofonia - Eu conheço a Rainha de Copas, personagem do Lewis Carroll que adorava mandar decepar cabeças, mas nunca ouvi falar de nenhuma Rainha de Duas Cabeças. Como surgiu o nome da sua companhia?
Almeida- Esse nome é uma coisa bem lúdica. Queen em inglês é um termo gay, mas em português não fica. É uma maneira de aportuguesar. E uma rainha de “duas cabeças” é a própria questão da dialética, de ter toda essa possibilidade de jogar com a dualidade: do ser e não ser, do sim e do não, do macho e da fêmea, instinto e razão. Os dois opostos. É o meu cérebro e a cabeça do meu pau. Você tem que pensar com as duas cabeças, a gente é guiado por um instinto muito forte. E é uma brincadeira com essa coisa gay. Para o público que não conhece, isso passa batido e não interfere em nada. Tem muita gente que nem se dá conta.


Então eu queria um nome que tivesse a ver com essa dualidade que é o próprio sentimento que permeia a minha obra. Esse nome eu criei em 1987, depois que eu voltei de Londres, que eu tive que registrar, fazer isso virar uma empresa.

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