25 de set. de 2007

Entrevista César Almeida/ Parte 2: Peças

Que trabalhos você destaca como os principais da tua carreira?
Eu gosto muito do Hamletrash (1996). Foi um trabalho que marcou muito a minha carreira porque ele era na verdade um ato de vingança contra o "teatrão". E era uma coisa que eu levava a cena com muita eficácia. Eu e a Pagu tínhamos uma afinação muito boa, e era um protesto tão debochado, que as pessoas que defendiam o teatrão não conseguiam sair imunes. Eu conseguia provocar muito com aquele texto.

Você buscou um público específico então?
Não. Geralmente eu tento dar essas duas leituras nas minhas peças. Eu sempre busco essa mistura do pop com o erudito. O público não tem obrigação nenhuma de ter referencias mais refinadas. Não precisa ter esse tipo de referência pra poder entender o meu trabalho. Eu quero que esse publico que não tem referência nenhuma goste do meu trabalho. E quem tem essas referências vai entender o trabalho muito melhor.

E quais outras peças você destacaria?
Eu gostei muito de ter montado Querelle (1999), que foi assim uma grande montagem, bastante criticada. Eduardo II, também, em 1993, gostei muito de ter feito. Eu gosto muito do Ardor 1 (2001) e do resultado do Ardor 2 (2007).

Como você lida com o fracasso de um espetáculo? Quais foram as peças que não deram certo?
Olha, é muito mau, né? Lenz, o nº2 (1999) era um texto que eu gostava muito e foi um fracasso! Eduardo II também, era um fracasso de público, as pessoas queriam me matar. Era a minha primeira direção profissional, patrocinada pelo Teatro Guaíra, uma coisa do estado (risos), e eu faço um trabalho daquele. O povo fica de cabelo em pé... Foi muito complicado.

Mas você tinha consciência de que o trabalho estava bom ou ruim?
Claro que eu tinha consciência de que estava legal. Daí o pior é isso, você saber que as pessoas não tem condição de assimilar aquele trabalho naquele exato momento. Que é o que acontece geralmente com trabalho gay, que hoje em dia tem uma facilidade um pouco maior de ser assimilado pelo público. Não quer dizer que ele seja assimilado pelas leis, pelo governo etc.

Às vezes você bota todas as tuas fichas num espetáculo e de repente ele não vira. Sei lá, às vezes o teatro que você escolheu não era bom para aquele tipo de público...

Às vezes é o contrário, tipo As Panteras (2003), que eu não queria que levassem à diante e os produtores do espetáculo iam levando, desgastando o espetáculo até arrebentar o espetáculo todo. E arrebentar a minha cara também, né! (risos). Porque era complicado, era uma coisa que era para acontecer e depois sumir... São experiências que a gente vai fazendo.

"A cultura está caminhando dinamicamente para algum lugar. Não sei se é bom, não sei se é ruim, mas ela está indo. Eu não vou impedir isso. Eu vou tentar me adaptar e tentar sofrer o menos possível. Eu me alimento disso tudo. Não vou ficar lendo Nietzsche o tempo inteiro."

Você se envergonha de As Panteras?
Não, acho que a gente tem erros e acertos na vida da gente. Não posso esconder debaixo do tapete, tipo: olha, não fui eu que fiz isso. Fui eu que fiz, entendeu? Ninguém é cem por cento sério o tempo todo.

Por isso a minha tentativa de fazer uma dramaturgia que misture o trágico com cômico. É como em Ardor: De repente as pessoas estão chorando, sofrendo, depois se partindo de rir da desgraça daquele personagem. Isso pra mim é prova de humanidade. Ninguém é cem por cento sério ou cem por cento cômico. Eu odeio aquele tipo de peça que você vai lá só pra cagar de rir. Ou só pra morrer de chorar. Nós somos tudo isso, temos o bom e o ruim, o brega e o erudito, o gosto pelo pastiche, pelo que é culto.

É nesse aspecto que eu falo das “duas cabeças”. É essa mistura do pop com o erudito. Isso me encanta. São todas referencias do meu momento. Eu também fico chocado de entrar na internet e ver que “Vai tomar no cu” [música utilizada na trilha sonora de Ardor 2] é o vídeo mais assistido no youtube. Mas são todas referencias do meu momento. O que eu posso fazer em relação a isso? Eu não vou conseguir mudar o país inteiro, o mundo inteiro. Mesmo que você não goste, que eu não goste, é real. Está aí. Os big brothers da vida... A cultura está caminhando dinamicamente para algum lugar. Não sei se é bom, não sei se é ruim, mas ela está indo. Eu não vou impedir isso. Eu vou tentar me adaptar e tentar sofrer o menos possível. Eu me alimento disso tudo. Não vou ficar lendo Nietzsche o tempo inteiro.

Às vezes os críticos me falam dessa coisa também, de eu misturar o amador com o profissional. Eu gosto de andar nesse limite entre o bom e o mau gosto. Eu acho produtivo, instigante. E essa questão de buscar uma perfeição é algo estéril. É uma crítica que você vai se colocando, você vai se afunilando tanto, que você chega num ponto em que você perde o contato com o público. “Não, isso não, não...” Tudo é não. Pouco é sim. Isso é estéril, é como uma cultura que vai se fechando demais e vai morrendo, porque não teve miscigenação. É o movimento natural das coisas. Tem que assimilar o mau gosto também. Está ligado com a moda, com o momento. Eu vejo a moda como uma evolução da sociedade. Ela de alguma maneira está refletindo um padrão de comportamento. Hoje em dia as mulheres não precisam mais usar saias e saiotes. Quer dizer, foi uma evolução comportamental que propiciou isso a elas. As coisas estão ligadas. São momentos em que a moda marcou um momento de transição, e que foi uma coisa importante para a sociedade. Não dá pra se desprezar isso.

Sua última peça, Ardor 2, tratava sobre ética e suicídio. Um personagem, inclusive, após enumerar os deslizes do presidente do senado, Renan Calheiros, dizia: “Tudo isso e o cara não se mata?” Quando Ardor 2 saiu de cartaz, no dia 9 de setembro, Renan ainda não tinha sido julgado no conselho de ética. No dia 12, o mandato dele não foi cassado. Você já esperava por isso?
Olha, eu acho que sim, porque nesse país é tão previsível que a corrupção vença, que já não me estranha mais. Seria um fato inédito se ele tivesse sido realmente cassado. Aí sim, eu poderia dizer que foi uma vitória da ética, principalmente. Mas é um país que não prima por isso. A nossa cultura não prima por ética nenhuma. Demorou muito tempo para eu entender isso. A gente é ensinado a cultuar essa ética e ao mesmo tempo sabemos que ela não existe. É um grande dilema da minha geração. Mas talvez esteja se desfazendo essa questão e as pessoas vão ter que se conscientizar de que realmente o único caminho é uma guerra mais fria, algo que não envolva a ética.

Você acha que a ética não faz mais sentido?
Eu acho que não faz sentido mesmo. Eu me sinto às vezes idiota de acreditar nisso.

Mas você ainda age de forma ética?
Sim, né? A gente tem que ter uma mínima ética, um fator mínimo pra você poder conviver em sociedade. Mas cada vez mais eu comprovo que a ética realmente não serve pra nada. Não se faz mais questão de ser hipocritamente ético. As pessoas estão descambando para uma outra postura talvez, e os políticos estão dando esse exemplo bem claro de que não há mais necessidade alguma de se ter ética na nossa vida.

E ao mesmo tempo, também no dia 12 de setembro, o premier do Japão renunciou em meio à crise...
Exatamente. Porque lá eles ainda levam a sério esse fator na política. Agora, se a gente se for ver a política mundial, ela está completamente desprovida de qualquer senso ético. Não tem mais necessidade de se fazer de conta que a ética existe. Acho que está bem claro que ela não existe e que ela não vai voltar a vigorar jamais.

Em Ardor 2, você trata do suicídio como conseqüência de uma responsabilidade ética, mas também como uma dúvida existencial ou uma fuga desesperada de quem não consegue se entregar a “certos desejos da carne”, como diz um personagem. Baseado em que você colocou essas questões?
Sempre fui um suicida em potencial e tem muito de experiência própria na peça. Eu acho que a repressão dos teus sentimentos é o que provoca talvez a maioria das patologias que você possa desenvolver. E isso tudo é comandado por quem? Por uma sociedade repressora, hipócrita, falsa, que quer te impor uma moral da qual ela não é fiel. Simplesmente ela quer usar isso como um instrumento de dominação. A partir do momento que ela vai tolhendo o teu desejo, na medida em que ela te sufoca, eu penso se vale a pena viver dessa maneira. Se realmente é válida uma existência levada de uma maneira arbitrária ao que você sente. O desrespeito a si próprio é o que pode haver de pior na existência do ser humano e eu sempre pensei no suicídio como uma maneira de você fugir, de você se auto-respeitar. Se você não pode viver de acordo com os teus princípios, por que viver de acordo com os princípios dos outros?

Você já tentou se matar?
Não, nunca cheguei às vias de fato. Eu sempre digo assim que os livros salvaram a minha vida. Ao você perceber que existiram outras pessoas que pensaram como você e que, às vezes até tentaram suicídio, você começa a compreender se essa dor que pode te levar ao suicídio vale a pena ou não, se pra quem se suicidou isso foi realmente válido ou não foi.

Também ninguém voltou do além para dizer se valeu à pena ou não...
Mas se você observar a história dessa pessoa, se você ver a trajetória dela, você pode pensar: será que havia a necessidade de se chegar ao extremo? Eu acho que, hoje em dia, ainda bem que a psiquiatria está aí pra gente poder se fiar nesses remédios.

Você faz análise?
Eu faço análise, tomo remédio...

Para depressão?
Exato, porque eu não consigo segurar essa dor. Pra mim ela é muito violenta seu eu não me medico, se eu não dou uma amenizada. E para mim a arte também é terapêutica nesse aspecto. Ela serve como um meio de comunicação com o mundo, é uma forma de colocar as minhas experiências e fazer isso chegar às outras pessoas.

Tanto Freud como Nietzsche diziam que a arte era o principal antídoto contra os nossos desejos de morte...
Através da arte você pode realizar todas as suas mortes de forma fictícia, você pode imaginá-las, colocá-las em cena. Talvez essas representações satisfaçam esse instinto, e você não precisa chegar às vias de fato. E você pode fantasiar isso, e brincar com isso, e ironizar em cima disso, e de repente você vê que talvez isso seja mais até engraçado do que você se matar realmente, porque na verdade você vai estar fazendo um favor à humanidade, deixando a tua existência, deixando de incomodar socialmente. A grande vingança é você se manter vivo, cutucando, incomodando as pessoas.

Nesses 25 anos, quais foram os momentos de transição da companhia? Por exemplo, no seu livro O Teatro da Rainha de 2 Cabeças, diz que você no início esteve muito ligado com a dança-teatro. Por que você não trabalha mais com isso?
Na década de 80 a dança-teatro era uma linguagem muito adotada por vários grupos, e daí fui viver em Londres e comecei a ver que isso era uma linguagem que podia trazer uma certa universalidade para o meu trabalho. Mas com o tempo fui aprendendo que não era isso, que não adiantava ter essa universalidade. Eu precisava era me comunicar com o meu espectador. Foi isso que me puxou para uma dramaturgia mais concreta, calcada numa realidade social, numa realidade autobiográfica, e que expressa o meu momento histórico. É isso que tento colocar, o ser humano em condições que eu conheço, que eu consigo destrinchar. E também isso tem uma função de fazer um retrato histórico do psicológico desse momento. Pensar que isso historicamente pode ter uma contribuição. Você está estudando o psicológico do teu tempo e da tua sociedade. E foi uma conseqüência muito natural, talvez eu sinta que eu consegui evoluir melhor pra isso. Eu acho que a dança é muito burra, ela é muito retrógrada, muito mais atrasada do que o teatro. Ela tem uns 100 anos de história pra viver pra poder alcançar o teatro.

Você costuma acompanhar a dança hoje?
Não costumo ver mais porque... deu pra bola, né? As pessoas trabalham só o físico, elas esquecem de pensar a dança. Então quando elas resolvem pensar sempre sai alguma coisa muito burra. É muito mal elaborado esse pensamento. Talvez corporalmente possa sair bem, mas não conseguem elaborar direito algo maior.

E que outras coisas ficaram para trás no seu teatro? Por exemplo, nos seus manifestos você diz que fez questão de abolir qualquer método teatral, principalmente o método stanislavskiano.
Eu sou bem criticado por causa disso, por essa minha birra de achar que o teatro stanislavskiano já não vigora mais. Foi a sua época, e as coisas precisam evoluir. Hoje em dia existem coisas muito mais importantes para eu colocar para um ator, para um artista, do que ficar ensinando para ele como tomar uma xícara de chá, ou como sentir alguma coisa através de uma memória emotiva. A minha proposição é criar uma consciência mesmo, da importância da obra de arte pra esse artista. É burro você querer acreditar nessa fé cênica stanislavskiana que é proposta. O publico já não acredita mais. Esse teatro que quer fazer você acreditar e não consegue, isso me incomoda muito. É ingênuo.

No meu teatro, eu gosto de deixar bem claro é que o artista está ali se expondo. É esse o lado humano que eu quero colocar. Deixar claro que nós somos pessoas, temos opinião sobre as coisas. Não somos máquinas. Eu quero que os atores interfiram na obra, que eles coloquem as suas opiniões. É um universo que não é nem meta-teatro, é meta-vida. Eu quero que o teatro tenha uma relação maior com a vida, do que só com a obra. Isso é o que eu acho mais perigosamente interessante. Que esses artistas corram risco de estar ali se expondo, senão é tudo muito confortável, é muito empreguinho. Não tem adrenalina. A obra de arte tem que ser provocativa o suficiente pra te estimular.

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