25 de mar. de 2008

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Quem escreve o nosso teatro?
Em Curitiba, a maioria dos diretores incorpora a função de dramaturgo

A figura emblemática do dramaturgo, como um Nelson Rodrigues, artista que apenas escrevia e não estava envolvido com outros processos de encenação, é coisa rara no meio teatral curitibano dos últimos tempos. Basta olhar nos anuários de teatro ou nos programas das peças para se perceber como, no geral, são os nossos diretores (que muitas vezes também atuam) que escrevem ou fazem adaptações de textos.

Diante desse quadro, este repórter indagou a artistas e estudiosos do teatro o motivo de existirem hoje tão poucos profissionais exclusivamente ligados à dramaturgia. Alguns dos reflexos em nossa cena local, gerados por essa fusão entre diretores e dramaturgos, também foram levantados.

Primeiramente, o professor do curso de especialização em Literatura Dramática e Teatro da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Ismael Sheffler, lembra que a falta de recursos financeiros é um dos fatores que faz as companhias reduzirem os seus membros. “Essa redução de pessoal acaba atingindo os dramaturgos também”, diz ele.

Tal argumento também é colocado por Jader Alves, diretor e professor do Teatro Lala Schneider: “O teatro se tornou uma área complicada para se sobreviver e por isso exige que as pessoas sejam mais versáteis”. Ele conta que muitas vezes não há como se pagar um dramaturgo, ou mesmo outro profissional, como um iluminador, por exemplo. “E é por isso que em Curitiba, não raro, há pessoas que dirigem, atuam, escrevem e ainda cuidam de outras funções. Se é difícil sobreviver fazendo teatro como um todo, sobreviver apenas escrevendo peças é quase impossível”.

Apesar dessa questão econômica, o professor Sheffler aponta casos em que o próprio diretor faz questão de escrever o texto a fim de imprimir a sua “voz” num espetáculo, tendência que se tornou forte a partir da segunda metade do século XX, quando o texto também passou a ter uma importância menor nas encenações.

Questão prática
Edson Bueno, outro exemplo de artista polivalente – por dirigir, atuar e escrever para o Grupo Delírio – arrisca que essa incorporação da função do dramaturgo pelo diretor é algo que passou a acontecer em Curitiba a partir da década de 70. “Até essa época existia ainda uma figura forte do dramaturgo. Mas isso foi mudando e um espetáculo hoje já surge da idéia de montagem”, diz ele. “Além disso, um diretor que possua uma companhia, por uma questão prática, prefere muitas vezes escrever um texto sob medida para os seus atores, ao invés de procurar o texto de uma outra pessoa”.

Entretanto, o ator, diretor e dramaturgo César Almeida, da companhia Rainha de 2 Cabeças, levanta um aspecto negativo sobre esse tipo de dramaturgia: “Quando você escreve pensando nos limites da sua companhia, isso influencia o desenvolvimento pleno da sua criatividade. Você acaba pensando sempre de forma modesta”. Segundo César, em países em que as verbas são mais abundantes para o teatro, os dramaturgos podem ousar muito mais. “O Robert Lepage [diretor e dramaturgo canadense], por exemplo, faz um trabalho maravilhoso. Mas porque ele tem a possibilidade de encenar as loucuras que ele inventa. A possibilidade de encenação dele é ilimitada”.

Faltam publicações
Outra questão que se pode levantar é que esse grande número de “direturgos” não costuma se importar tanto com a publicação dos seus textos, por naturalmente estarem mais preocupados com as suas encenações.

Fátima Ortiz é uma das poucas dramaturgas curitibanas que possui um livro publicado (Coleção 4 textos de teatro para crianças: Batimpaz; Pinha, Pinhão, Pinheiro; Era uma vez outra história; Ari Areia, um grãozinho apaixonado) junto com o marido Enéas Lour, também dramaturgo. Ela reconhece que “no geral, as pessoas escrevem pensando no seu grupo, na sua peça. Não pensam muito que um texto pode transcender a montagem e ficar registrado. Às vezes o dramaturgo nem chega a ter um texto bem acabado”, diz.

César Almeida é outra exceção na cidade por ter editado suas peças na antologia O Teatro da Rainha de 2 Cabeças. Segundo ele, uma publicação é válida “tanto como registro histórico, como para mostrar para outras pessoas que existe uma dramaturgia sendo feita aqui”. Depois que publicou seu livro, três companhias de outras cidades já montaram peças suas, conta César. “É aí que você vê como um livro é um veículo importante. Levar uma montagem para fora está cada vez mais difícil, já a sua dramaturgia pode ser capaz de chegar em outros lugares”, conclui.

Desinteresse das editoras
Os artistas e especialistas também são unânimes em lembrar como é difícil de se publicar teatro contemporâneo no Brasil. Questionada sobre a existência de editoras que façam isso, a professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Marta Morais da Costa, especialista em dramaturgia brasileira, apenas dá risada. E depois explica: “O Serviço Nacional de Teatro (SNT), depois o Instituto Nacional de Teatro (Inacen), que o ex-presidente Collor extinguiu, publicavam teatro. Depois os autores ficaram nas mãos das editoras comerciais, que tradicionalmente publicam pouca poesia e nenhum teatro”.

Responsável pela produção editorial da Travessa dos Editores, Rubens Campana reconhece que a procura do público por peças ainda é baixa no Brasil e, portanto, há pouco interesse comercial em publicá-las. A própria Travessa dos Editores só possui uma única peça em seu catálogo – Céu de Lona, de Décio Pignatari. Porém, Rubens lembra que recebe pouquíssimos originais de dramaturgos e sugere que eles próprios se articulem para publicar seus trabalhos.

A utilização de leis de incentivo por meio da Fundação Cultural de Curitiba (como fizeram César Almeida e Fátima Ortiz com seus livros) ou de editais promovidos pela Fundação Nacional de Artes (Funarte) pode ser uma saída para que a dramaturgia curitibana seja preservada e não desapareça com o fechar das cortinas.


Alguns dos poucos dramaturgos que possuem peças editadas em Curitiba

César Almeida: O Teatro da Rainha de 2 Cabeças, 2004. Edição do autor, por meio de lei de incentivo.

Hugo Mengareli: O incrível retorno do cavaleiro solitário, 1996. Editora da UFPR.

Fátima Ortiz e Enéas Lour: Coleção 4 textos de teatro para crianças: Batimpaz; Pinha, Pinhão, Pinheiro; Era uma vez outra história; Ari Areia, um grãozinho apaixonado, 1998. Edição dos autores, por meio de lei de incentivo.


* Publicada no Caderno G da Gazeta do Povo 22/03/08

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