19 de set. de 2011

Dino e Gita trocam de mãos

Eu estava sentado num daqueles bancos azuis de plástico, a mochila no colo, e olhava para os ônibus que chegavam e partiam. Sem vontade de ler ou de escrever, apenas observava as garotas magnéticas que circulam pelas rodoviárias catarinenses. Entre uma observação e outra, flashes dos dias que passei na Schnapsfest espocavam na minha cabeça. Após uma espera de 25 minutos, eu ainda ria sozinho quando entrei no ônibus e sentei na minha poltrona, no corredor.

Eu estava solteiro e desesperado na época e torcia para que, pelo menos nessa viagem de volta a Curitiba, a minha sorte melhorasse. Mas assim que vi entrar no ônibus um homem corpulento, de uns quarenta anos, vestido com um casacão preto de inverno, tive a estranha certeza de que seria ele, e não uma magnética, que se sentaria ao meu lado.

Eu já o tinha observado involuntariamente minutos atrás. Vi caminhando, apoiado em muletas. Uma má formação nos seus dois pés, calçados em havaianas, impedia que ele pudesse andar normalmente. Nas mãos, tal como nos pés, ele tinha os dedos colados, dois a dois, tendo livre apenas os polegares. Esse homem também tinha um aspecto elegante como eu, seja pela situação da calça jeans que vestia e das suas havaianas, como pela jaqueta barata de nylon. Para completar, usava um boné marrom ensebado, que amassava uma cabeleira crespa e revolta.

Ao caminhar na minha direção, ele resmungava alguma coisa, e quando se aproximou e conferiu o número 22, me perguntou se eu não gostaria de trocar de lugar com ele, para que ficasse no corredor.

“Melhor pra eu esticar minhas pernas. Tudo bem pra você?”

O ônibus começou a andar e, pela janela, ao mesmo tempo em que via o seu reflexo, eu olhava para os funcionários encarregados de entregar e guardar as malas dentro dos ônibus. Eu não queria ficar olhando diretamente pra ele e para suas mãos e pés, e eu também percebia que as pessoas em volta olhavam pra ele atentas, ao mesmo tempo em que fingiam não olhar.


Então, do nada, após olhar para o seu bilhete e dar mais um resmungo, ele começou a falar comigo, me contando que as empresas de ônibus eram obrigadas por lei a dar uma cota de passagens para deficientes e idosos, e que algumas, malandramente, se negavam a fazer isso.

"Mas eu conheço meus direitos, e meto a boca neles. Comigo não tem essa não.”

Depois disso, foi minha vez de tentar uma conversa.

“E então, estava na Schnapsfest?”


“Não. Vim para o Stammtisch em Indaial. Adoro comer marreco com batata e chucrute, e hoje almocei com uns amigos do Clube de Caça e Tiro... E você? Estava na Schnapsfest?”


“Sim, e fiquei uns dias aqui na casa do meu primo.”


“Hummm”.


Era engraçado. Pela minha visão preconceituosa, eu achava que ele não tinha muito a ver com o Stammtisch e com Indaial e todo aquele universo.

Em seguida, perguntei o nome dele e depois disse o meu, e assim nos apresentamos. Então eu não sei como o papo engrenou, mas acho que começou mesmo por causa de música, até porque vi os fones de ouvido pendurados no pescoço dele, e logo ele estava manuseando o seu discman, e procurando pilhas e coisa e tal.

“Gosta de Fito Paez?”, ele perguntou.


“Putz, cara, não manjo muito dele.”

“Ele já gravou com o Paralamas e tudo.”


“Sim, eu sei, mas nunca ouvi nenhum disco dele.”

“E Sui Generis, conhece?”


“Não, nunca ouvi falar.”

“Nunca ouviu falar no Charly Garcia? Cara, você tem que ouvir esse som”, disse, incrédulo. “É muito bom, tem piano, flauta...”


“E é tipo o quê? Tipo Jethro Tull?”

“Hummm, mais ou menos. É outra coisa... Peraí que eu te mostro”.

Ele levantou, pegou a mochila e procurou um CD num estojo de plástico. Então achou o disquinho que procurava e meteu no discman.


“Ouve aí”, e me passou um dos fones.

Aí eu não sei bem como foi, mas de repente ele começou a falar um pouco sobre a sua vida. Antes contou que não ficaria em Curitiba. Assim que chegasse na cidade, ele seguiria viagem rumo ao norte, acho que para o Mato Grosso ou Goiás. No meio disso, devo ter perguntado onde ele tinha nascido, mas já não me lembro o que ele respondeu. O que guardo bem, porque me surpreendeu, foi quando ele disse que morou durante parte da infância e juventude em Paranaguá, minha cidade.


“Conheço bem o Porto, a Vila Oboite...”

Foi em Paranaguá, aliás, que ele descobriu que adorava ler e desde então estava sempre com um livro debaixo do braço.

“Está indo pra igreja?, perguntavam. Só porque eu estava com um livro grosso e eles achavam que era a Bíblia. Era Tolstoi! Dostoievski, cara. Já leu esses?
Mas os caras não achavam que era isso, achavam que era a Bíblia. A maior parte das pessoas não lê porra nenhuma. São como essas toupeiras aqui do nosso lado, só ouvindo a nossa conversa. Devem estar anotando os autores e as coisas que a gente fala!”, e então gargalhou alto.

Ele ainda me contou que, a partir de uma certa idade, escolheu, isso mesmo, escolheu ganhar a vida como mendigo. Não sei se a leitura de gente como Henry Miller ou Tolstoi ou Henry Thoreau o influenciou, mas a questão era que, para ele, era normal sentar na rua e esmolar. Outra coisa que me surpreendeu era que ele tinha família, irmãos, acho que no Mato Grosso ou em Brasília, que tinham grana, e ele mesmo também tinha alguma. Afinal, lá estava ele, voltando da folia no Stammtisch, então ele não era um miserável, como eu achava que a maioria dos mendigos era. Não. Ele tinha dinheiro para comprar pilhas duracell para seu discman, tinha dinheiro para comprar discos e livros, enfim. Ele, como mendigo, devia ter mais renda do que eu, que vivia com meus pais e fazia textos como freelancer aqui e ali.

E quando ele então me perguntou o que eu fazia eu fiquei um pouco desconcertado. Justamente por ter tão pouco a dizer. Então respondi que era jornalista, que morava com meus pais...

“Jornalista? Poxa! Daqueles que desvendam maracutaias e denunciam criminosos! Seu pai deve ficar orgulhoso de você!”, disse ele, que antes me revelou fazer parte de algum partido como PTB ou PC do B...



Ri constrangido e expliquei em seguida qual era a minha real situação.


“Na verdade estou me formando ainda em jornalismo e trabalho fazendo assessoria de imprensa para uma escola de dança...”


E para não desapontá-lo mais e tentar causar alguma impressão­ acrescentei: “Também estou terminando de escrever um livro, uma biografia sobre um escritor...”


“Um livro? Você sabe que eu também estou escrevendo? É um romance meio biográfico... Você quer ver?”.


Ele se levantou, pegou a bolsa novamente e tirou dessa vez um caderno. Havia folhas e folhas preenchidas à caneta. E então leu, com uma voz baixa e macia, alguns trechos pra mim. É uma pena não lembrar nada deles, mas acho que talvez eles falavam sobre uma mulher e luz de velas, mas talvez seja invenção minha agora. O fato é que essa parte da leitura foi muito rápida e, quando percebi, estávamos em São José dos Pinhais e algumas pessoas já se levantavam para pegar as suas bolsas, tumultuando tudo ao nosso redor.


Pouco antes de o ônibus parar eu pensava, puxa, preciso dar algum presente pra esse cara! E lembrei que eu tinha na bolsa um Deserto dos Tártaros que eu havia comprado, ao acaso, em um sebo perto de casa. Então assim que desembarquei fiquei esperando ele em frente ao ônibus. Eu não sabia bem como dizer o que eu queria dizer, mas disse:

“Olha, cara, foi um prazer te conhecer, e eu queria te dar um presente aqui, um livro que eu comecei a ler, e que é bacana.”


“E por que não terminou?


“Cara, ainda não deu tempo e nessa viagem não sobrou muito tempo pra leitura.”

“Mas e é bom? Como é?”


“É muito louco. É sobre um soldado que vai servir em um quartel no meio do deserto, onde eles temem que os tártaros possam atacá-los. Mas nada acontece e daí eles ficam na maior paranóia com isso”, resumi, gesticulando muito, como é do meu feitio.


“Cara, esse italiano, o Dino Buzati, tem gente que compara ele ao Kafka e tal, tem uma coisa de absurdo, enfim, eu acho que você pode gostar”, completei.


Antes que eu terminasse a frase ele começou a revirar as coisas na sua bolsa, dizendo: “Peraí que eu tenho uma coisa pra você também”, e tirou um livrinho branco e gordinho, que tinha uma capa em papel manteiga, com detalhes em dourado.


“Eu comprei esses dias num sebo. É muito bom, você vai gostar!”, disse, me estendendo O Monge Endinheirado, a Mulher do Bandido e Outras Histórias de Um Rio Indiano, da Gita Mehta.

Depois de trocarmos os livros, apertamos nossas mãos e trocamos palavras como “um dia desses a gente se vê”, antes de cada um tomar o seu rumo e nunca mais se ver novamente.

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