25 de set. de 2007

+ Teatro
Num café,
com a Rainha de 2 Cabeças
O ator, dramaturgo e diretor, César Almeida, fala sobre seus 25 anos de polêmica nos palcos curitibanos
Fotos:Franco Fuchs

César Almeida, o criador da companhia Rainha de 2 Cabeças.

Pelo teatro e, principalmente, por um caso de amor, aos 19 anos, César Almeida deixou o conforto da casa dos pais e uma faculdade de arquitetura em Londrina. César então veio para Curitiba em 1982 e logo entrou no Curso Permanente de Teatro (CPT), promovido pelo Teatro Guaíra.

No ano seguinte, ele dirigiria a peça Aceitam-se encomendas de vestido de noiva - montagem que o CPT, a princípio, não quis assinar, devido ao conteúdo claramente homossexual, revela César. Foi o início de uma produção teatral que continuaria sempre provocante, irreverente e comprometida com a causa gay.

Na entrevista a seguir, feita em um café próximo ao teatro que lhe formou, mas que até hoje nunca lhe concedeu um prêmio Gralha Azul, César Almeida faz um balanço dos seus 25 anos de carreira.


(* A entrevista foi publicada posteriormente no livro O Teatro da Rainha de 2 Cabeças, Volume 2, 2009)

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Entrevista César Almeida/ Parte 1: Origens



Francofonia - Onde você nasceu? Quando começou a fazer teatro e como veio parar em Curitiba?
César Almeida - Eu nasci em Londrina. Eu comecei a fazer arquitetura na Uel, fiz dois anos, e aí um amigo meu me convidou para fazer uma peça de teatro. A partir do momento que eu descobri esse universo do teatro, pra mim foi mágico. Decidi que era aquilo mesmo que eu queria. E daí larguei a faculdade e vim para Curitiba estudar teatro. Foi tudo muito rápido. Eu digo assim que foi um momento astrológico meu muito engraçado e interessante.

Francofonia - Momento astrológico?
Almeida - É, eu acredito em astrologia. Eu tenho que dizer: não é que eu não acredite em nada, eu acredito em astrologia.

Francofonia - Sério?
Almeida - É sério. Eu acho que é uma ciência despretensiosa, e que alguém criou há muitos milênios. Ela não nasceu do nada. Ela tem bases mais sólidas do que a gente imagina. Mas também tem gente que não acredita. Tem gente que não acredita que o homem foi pra lua até hoje...

Francofonia - Você chega a fazer mapa astral, essas coisas?
Almeida - Sim, sim, tudo. Bom, então comecei a fazer teatro aqui. Já logo montei a minha primeira peça [Aceitam-se encomendas de vestidos de noiva], que era uma peça extremamente gay. E aí fui chamado pela diretora do grupo [o Curso Permanente de Teatro (CPT) promovido pelo Teatro Guaíra], na época, que me pediu para que eu não colocasse o nome da escola. Ela queria que a peça ficasse como se fosse montada por um grupo independente.

Francofonia - E quem era a diretora do CPT?
Almeida - A Ivone Hoffmman. Mas foi muito legal porque a peça foi super bem recebida, a gente participou de festivais, viajou pelo interior. As pessoas queriam, as pessoas precisavam, eu sentia a necessidade de se ter uma arte gay mesmo, uma arte que manifestasse o que as pessoas estavam querendo ver naquele momento, e era muito difícil você ver uma obra de arte gay em 1982. Isso não era nada discutido na época.

Francofonia - Mas e no final, o Teatro Guaíra assinou o espetáculo?
Almeida - Sim, obviamente que eu não ia deixar que ela... Nunca! Eu posso dizer que nunca me deixei abater por esse tipo de intimidação. Nunca mesmo. Aliás, até na peça Ardor 2 foi bem difícil ser levantado o dinheiro do patrocínio, porque os patrocinadores não queriam colocar o nome numa peça gay. Alguns até doaram dinheiro, mas não quiseram que o nome fosse colocado.

Francofonia - É engraçado, porque como isso poderia sujar o nome de uma empresa? Ao patrocinar um espetáculo gay, só mostra que ela está sendo mais tolerante, mais politicamente correta. É uma coisa até anticapitalista, porque a empresa deixa de ganhar um público.
Almeida- Pra você ver como ainda é tacanha a mentalidade do empresário. Pra você ver como Curitiba é. A cidade ainda tem esse ranço que é complicado, e talvez a gente nunca vá perder.

Francofonia - Mas, com tudo isso, por que você decidiu fazer teatro em Curitiba? Você já pensou em fazer teatro em outro lugar?
Almeida - Por isso que eu te digo, foi um momento astrológico muito louco. Quando vim pra Curitiba, eu vim por amor, talvez movido pelo amor ao teatro, mas primeiro foi o amor mesmo, que entrou na minha vida. Foi o primeiro romance que eu tive e aí vim morar em Curitiba.

Francofonia - Ele era daqui?
Almeida - Era. Então foi uma coincidência feliz de casar essa história da escola de teatro e esse meu romance.

Francofonia - Ele fazia teatro também?
Almeida - Não, ele era agrônomo. Então quer dizer, foi uma confluência muito grande de fatores e, de repente, a minha vida deu uma guinada e eu acabei parando aqui em Curitiba. Eu acho que Curitiba é uma cidade confortável de se morar, urbanisticamente falando. Tem uma qualidade de vida bacana. Agora, a mentalidade é difícil. É uma cidade muito retrógrada, muito jacu. É uma cidade caipira mesmo. As pessoas tem uma mentalidade muito simplista de ser. Do tipo, o certo é isso: ser católico, ter uma família heterossexual. É uma cidade muito TFP: tradição, família e propriedade. E uma cidade pequena, que todo mundo sabe da vida do outro. Essa coisa de compartilhar muito a informação da vida íntima dos outros acaba virando um empecilho para que a mentalidade de expanda um pouco mais.

"Sempre tive esse meu lado rebelde que eu colocava pra fora, mas discretamente. E aí a partir do momento que eu me descobri, que eu descobri que a minha sexualidade era essa, e que eu não ia mais suportar mais isso, para mim foi muito natural dizer um não para tudo."

Francofonia - Você já pensou em morar em outros lugares?
Almeida - Depois que eu terminei a minha escola de teatro aqui eu fui morar em Londres. Morei um ano, aí vi que ia ser impossível fazer teatro lá...

Francofonia - Não tinha abertura?
Almeida - Não tinha. Ser estrangeiro é muito difícil. É uma tarefa que te consome todo o teu gás. Eu acho que se eu ficasse lá, talvez em 10, 15 anos, eu começasse a fazer alguma coisa. E eu não tenho paciência para esperar esse tempo. Aí voltei pro Brasil. Tentei morar em Porto Alegre, tentei morar em São Paulo. Não me adaptei e acabei voltando pra cá. É uma cidade que tem um padrão de vida bacana, mesmo pra quem não tem uma profissão muito... correta, digamos assim.

Francofonia - Você se considera um curitibano hoje?
Almeida - Eu me considero bastante curitibano. Hoje até defendo muitas coisas que o curitibano tem, de ser um pouco mais reservado, mais fechado, mais precavido com as pessoas do que o restante do Brasil. Eu acho até uma qualidade. Não vejo mais como um defeito. Mas ao mesmo tempo a gente tem uma política muito tacanha, uma política de estado. Pelo menos a política cultural do município eu acho bem legal. Ela ainda é democrática o suficiente para atender vários típicos de manifestações artísticas.

Francofonia - Na época em que você morava em Londrina, você tinha algum contato com o teatro que era feito lá?
Almeida - Não, pois quando eu comecei a ter esse contato foi quando eu saí de lá. Foi uma experiência super rápida e, assim, tipo, cresci vendo os trabalhos da Nitis Jacon, que na época era uma artista, que eu digo que hoje em dia já não é mais... Então era uma época de muita efervescência cultural. Tinha a Nitis, o grupo Delta, que era um grupo super forte. Na música tinha o Itamar Assumpção, o Arrigo Barnabé... E hoje Londrina está uma pobreza.

Francofonia - E o Mário Bortolotto?
Almeida - Cheguei a conhecer, vi algum trabalho dele, mas o Mário quando começou a produzir eu já morava em Curitiba. Então não acompanhei muito de perto. Mas é uma criatura que também batalha por uma obra autoral, uma obra que tem a ver com o que ele acredita. Acho isso muito legal da parte dele. Mas hoje em dia não consigo ver mais ninguém lá que você diga, oh, isso é bom de ver.

Francofonia - E como era a relação com a tua família em Londrina? Eles te incentivavam a ser artista?
Almeida - Sim, sempre me incentivaram. Mas a partir do momento em que eu resolvi assumir a minha homossexualidade, largar uma faculdade a qual eles imaginavam que eu ia ter algum futuro, então foi uma relação muito tensa. E a partir desse momento eu já sabia que eu ia sair fora, que eu ia tocar a minha vida da minha maneira. Foi muito complicado para eles. Eu nunca fui tão feliz na minha vida.

Francofonia - Você ainda mantém contato a família?
Almeida - Sim. Mas a gente levou muito tempo para reatar a nossa relação. Uma relação que nunca tinha sido boa, na verdade. Sempre foi uma relação de aparências. Eu sempre cobrei que eu queria uma relação mais profunda com eles, que eu nunca tive. Eram pessoas que não conseguiam externar seus sentimentos e isso pra mim é uma coisa essencial. Eu não consigo ver uma relação de verdade.

Francofonia - Mas como era a sua família? Você teve pai, mãe...
Almeida - Sim, era uma família estável, toda certinha. Meu pai era representante comercial, não foi uma pessoa que teve escolaridade. Minha mãe, professora de português, sempre me incentivou muito à leitura, a gostar da cultura.

Francofonia - Você tem irmãos?
Almeida - Tenho um irmão e uma irmã. Eu sou o irmão mais velho, então a responsabilidade era maior. Eu ia ser o primeiro rebento deles a florescer e de repente quando eles vêem, esse filho se revolta, sai fora... Foi bem difícil para a cabeça deles. A gente ficou muito tempo sem se falar. Isso numa época em que eu precisava muito do apoio deles, que eu não tive. A gente se privou de ter uma convivência mais estreita. Mas também acho que é natural, sabe. Cada um leva a vida como pensa. Eu também não interferi na vida deles assim como eu não queria que eles interferissem na minha. Mas ainda bem que eu consegui dar esse passo relativamente cedo, senão acho que teria perdido muito tempo. Teria perdido oportunidades que o destino me proporcionava.

Francofonia - Nas suas peças você sempre faz questão de provocar, seja os políticos, a igreja, o público ou a própria classe teatral. Você sempre foi um sujeito corajoso desde pequeno? Quando você começou a se impor?
Almeida - Eu me eduquei pra isso, desde criança. Eu sempre prezei por isso. Ao mesmo tempo eu sempre tive uma educação muito repressora. Eu era o aluno certinho, nota 10, mas isso não me impedia de ser o mais bagunceiro, o mais displicente na sala. Sempre tive esse meu lado rebelde que eu colocava pra fora, mas discretamente. E aí a partir do momento que eu me descobri, que eu descobri que a minha sexualidade era essa, e que eu não ia mais suportar mais isso, para mim foi muito natural dizer um não para tudo. Eu não gosto de fazer coisas para as quais eu não nasci. Eu não conseguiria ter um emprego convencional, careta que estivesse me tolhendo. Eu não consigo. Então foi uma questão de opção de vida, de não querer me submeter a um sistema que eu sabia podre, desde pequeno. Eu já tinha essa noção que a sociedade não merecia que eu me deixasse escravizar, e assim eu levo a minha vida até hoje. Talvez seja a minha grande qualidade, não me vender a esse sistema.

Francofonia - Eu conheço a Rainha de Copas, personagem do Lewis Carroll que adorava mandar decepar cabeças, mas nunca ouvi falar de nenhuma Rainha de Duas Cabeças. Como surgiu o nome da sua companhia?
Almeida- Esse nome é uma coisa bem lúdica. Queen em inglês é um termo gay, mas em português não fica. É uma maneira de aportuguesar. E uma rainha de “duas cabeças” é a própria questão da dialética, de ter toda essa possibilidade de jogar com a dualidade: do ser e não ser, do sim e do não, do macho e da fêmea, instinto e razão. Os dois opostos. É o meu cérebro e a cabeça do meu pau. Você tem que pensar com as duas cabeças, a gente é guiado por um instinto muito forte. E é uma brincadeira com essa coisa gay. Para o público que não conhece, isso passa batido e não interfere em nada. Tem muita gente que nem se dá conta.


Então eu queria um nome que tivesse a ver com essa dualidade que é o próprio sentimento que permeia a minha obra. Esse nome eu criei em 1987, depois que eu voltei de Londres, que eu tive que registrar, fazer isso virar uma empresa.

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Entrevista César Almeida/ Parte 2: Peças

Que trabalhos você destaca como os principais da tua carreira?
Eu gosto muito do Hamletrash (1996). Foi um trabalho que marcou muito a minha carreira porque ele era na verdade um ato de vingança contra o "teatrão". E era uma coisa que eu levava a cena com muita eficácia. Eu e a Pagu tínhamos uma afinação muito boa, e era um protesto tão debochado, que as pessoas que defendiam o teatrão não conseguiam sair imunes. Eu conseguia provocar muito com aquele texto.

Você buscou um público específico então?
Não. Geralmente eu tento dar essas duas leituras nas minhas peças. Eu sempre busco essa mistura do pop com o erudito. O público não tem obrigação nenhuma de ter referencias mais refinadas. Não precisa ter esse tipo de referência pra poder entender o meu trabalho. Eu quero que esse publico que não tem referência nenhuma goste do meu trabalho. E quem tem essas referências vai entender o trabalho muito melhor.

E quais outras peças você destacaria?
Eu gostei muito de ter montado Querelle (1999), que foi assim uma grande montagem, bastante criticada. Eduardo II, também, em 1993, gostei muito de ter feito. Eu gosto muito do Ardor 1 (2001) e do resultado do Ardor 2 (2007).

Como você lida com o fracasso de um espetáculo? Quais foram as peças que não deram certo?
Olha, é muito mau, né? Lenz, o nº2 (1999) era um texto que eu gostava muito e foi um fracasso! Eduardo II também, era um fracasso de público, as pessoas queriam me matar. Era a minha primeira direção profissional, patrocinada pelo Teatro Guaíra, uma coisa do estado (risos), e eu faço um trabalho daquele. O povo fica de cabelo em pé... Foi muito complicado.

Mas você tinha consciência de que o trabalho estava bom ou ruim?
Claro que eu tinha consciência de que estava legal. Daí o pior é isso, você saber que as pessoas não tem condição de assimilar aquele trabalho naquele exato momento. Que é o que acontece geralmente com trabalho gay, que hoje em dia tem uma facilidade um pouco maior de ser assimilado pelo público. Não quer dizer que ele seja assimilado pelas leis, pelo governo etc.

Às vezes você bota todas as tuas fichas num espetáculo e de repente ele não vira. Sei lá, às vezes o teatro que você escolheu não era bom para aquele tipo de público...

Às vezes é o contrário, tipo As Panteras (2003), que eu não queria que levassem à diante e os produtores do espetáculo iam levando, desgastando o espetáculo até arrebentar o espetáculo todo. E arrebentar a minha cara também, né! (risos). Porque era complicado, era uma coisa que era para acontecer e depois sumir... São experiências que a gente vai fazendo.

"A cultura está caminhando dinamicamente para algum lugar. Não sei se é bom, não sei se é ruim, mas ela está indo. Eu não vou impedir isso. Eu vou tentar me adaptar e tentar sofrer o menos possível. Eu me alimento disso tudo. Não vou ficar lendo Nietzsche o tempo inteiro."

Você se envergonha de As Panteras?
Não, acho que a gente tem erros e acertos na vida da gente. Não posso esconder debaixo do tapete, tipo: olha, não fui eu que fiz isso. Fui eu que fiz, entendeu? Ninguém é cem por cento sério o tempo todo.

Por isso a minha tentativa de fazer uma dramaturgia que misture o trágico com cômico. É como em Ardor: De repente as pessoas estão chorando, sofrendo, depois se partindo de rir da desgraça daquele personagem. Isso pra mim é prova de humanidade. Ninguém é cem por cento sério ou cem por cento cômico. Eu odeio aquele tipo de peça que você vai lá só pra cagar de rir. Ou só pra morrer de chorar. Nós somos tudo isso, temos o bom e o ruim, o brega e o erudito, o gosto pelo pastiche, pelo que é culto.

É nesse aspecto que eu falo das “duas cabeças”. É essa mistura do pop com o erudito. Isso me encanta. São todas referencias do meu momento. Eu também fico chocado de entrar na internet e ver que “Vai tomar no cu” [música utilizada na trilha sonora de Ardor 2] é o vídeo mais assistido no youtube. Mas são todas referencias do meu momento. O que eu posso fazer em relação a isso? Eu não vou conseguir mudar o país inteiro, o mundo inteiro. Mesmo que você não goste, que eu não goste, é real. Está aí. Os big brothers da vida... A cultura está caminhando dinamicamente para algum lugar. Não sei se é bom, não sei se é ruim, mas ela está indo. Eu não vou impedir isso. Eu vou tentar me adaptar e tentar sofrer o menos possível. Eu me alimento disso tudo. Não vou ficar lendo Nietzsche o tempo inteiro.

Às vezes os críticos me falam dessa coisa também, de eu misturar o amador com o profissional. Eu gosto de andar nesse limite entre o bom e o mau gosto. Eu acho produtivo, instigante. E essa questão de buscar uma perfeição é algo estéril. É uma crítica que você vai se colocando, você vai se afunilando tanto, que você chega num ponto em que você perde o contato com o público. “Não, isso não, não...” Tudo é não. Pouco é sim. Isso é estéril, é como uma cultura que vai se fechando demais e vai morrendo, porque não teve miscigenação. É o movimento natural das coisas. Tem que assimilar o mau gosto também. Está ligado com a moda, com o momento. Eu vejo a moda como uma evolução da sociedade. Ela de alguma maneira está refletindo um padrão de comportamento. Hoje em dia as mulheres não precisam mais usar saias e saiotes. Quer dizer, foi uma evolução comportamental que propiciou isso a elas. As coisas estão ligadas. São momentos em que a moda marcou um momento de transição, e que foi uma coisa importante para a sociedade. Não dá pra se desprezar isso.

Sua última peça, Ardor 2, tratava sobre ética e suicídio. Um personagem, inclusive, após enumerar os deslizes do presidente do senado, Renan Calheiros, dizia: “Tudo isso e o cara não se mata?” Quando Ardor 2 saiu de cartaz, no dia 9 de setembro, Renan ainda não tinha sido julgado no conselho de ética. No dia 12, o mandato dele não foi cassado. Você já esperava por isso?
Olha, eu acho que sim, porque nesse país é tão previsível que a corrupção vença, que já não me estranha mais. Seria um fato inédito se ele tivesse sido realmente cassado. Aí sim, eu poderia dizer que foi uma vitória da ética, principalmente. Mas é um país que não prima por isso. A nossa cultura não prima por ética nenhuma. Demorou muito tempo para eu entender isso. A gente é ensinado a cultuar essa ética e ao mesmo tempo sabemos que ela não existe. É um grande dilema da minha geração. Mas talvez esteja se desfazendo essa questão e as pessoas vão ter que se conscientizar de que realmente o único caminho é uma guerra mais fria, algo que não envolva a ética.

Você acha que a ética não faz mais sentido?
Eu acho que não faz sentido mesmo. Eu me sinto às vezes idiota de acreditar nisso.

Mas você ainda age de forma ética?
Sim, né? A gente tem que ter uma mínima ética, um fator mínimo pra você poder conviver em sociedade. Mas cada vez mais eu comprovo que a ética realmente não serve pra nada. Não se faz mais questão de ser hipocritamente ético. As pessoas estão descambando para uma outra postura talvez, e os políticos estão dando esse exemplo bem claro de que não há mais necessidade alguma de se ter ética na nossa vida.

E ao mesmo tempo, também no dia 12 de setembro, o premier do Japão renunciou em meio à crise...
Exatamente. Porque lá eles ainda levam a sério esse fator na política. Agora, se a gente se for ver a política mundial, ela está completamente desprovida de qualquer senso ético. Não tem mais necessidade de se fazer de conta que a ética existe. Acho que está bem claro que ela não existe e que ela não vai voltar a vigorar jamais.

Em Ardor 2, você trata do suicídio como conseqüência de uma responsabilidade ética, mas também como uma dúvida existencial ou uma fuga desesperada de quem não consegue se entregar a “certos desejos da carne”, como diz um personagem. Baseado em que você colocou essas questões?
Sempre fui um suicida em potencial e tem muito de experiência própria na peça. Eu acho que a repressão dos teus sentimentos é o que provoca talvez a maioria das patologias que você possa desenvolver. E isso tudo é comandado por quem? Por uma sociedade repressora, hipócrita, falsa, que quer te impor uma moral da qual ela não é fiel. Simplesmente ela quer usar isso como um instrumento de dominação. A partir do momento que ela vai tolhendo o teu desejo, na medida em que ela te sufoca, eu penso se vale a pena viver dessa maneira. Se realmente é válida uma existência levada de uma maneira arbitrária ao que você sente. O desrespeito a si próprio é o que pode haver de pior na existência do ser humano e eu sempre pensei no suicídio como uma maneira de você fugir, de você se auto-respeitar. Se você não pode viver de acordo com os teus princípios, por que viver de acordo com os princípios dos outros?

Você já tentou se matar?
Não, nunca cheguei às vias de fato. Eu sempre digo assim que os livros salvaram a minha vida. Ao você perceber que existiram outras pessoas que pensaram como você e que, às vezes até tentaram suicídio, você começa a compreender se essa dor que pode te levar ao suicídio vale a pena ou não, se pra quem se suicidou isso foi realmente válido ou não foi.

Também ninguém voltou do além para dizer se valeu à pena ou não...
Mas se você observar a história dessa pessoa, se você ver a trajetória dela, você pode pensar: será que havia a necessidade de se chegar ao extremo? Eu acho que, hoje em dia, ainda bem que a psiquiatria está aí pra gente poder se fiar nesses remédios.

Você faz análise?
Eu faço análise, tomo remédio...

Para depressão?
Exato, porque eu não consigo segurar essa dor. Pra mim ela é muito violenta seu eu não me medico, se eu não dou uma amenizada. E para mim a arte também é terapêutica nesse aspecto. Ela serve como um meio de comunicação com o mundo, é uma forma de colocar as minhas experiências e fazer isso chegar às outras pessoas.

Tanto Freud como Nietzsche diziam que a arte era o principal antídoto contra os nossos desejos de morte...
Através da arte você pode realizar todas as suas mortes de forma fictícia, você pode imaginá-las, colocá-las em cena. Talvez essas representações satisfaçam esse instinto, e você não precisa chegar às vias de fato. E você pode fantasiar isso, e brincar com isso, e ironizar em cima disso, e de repente você vê que talvez isso seja mais até engraçado do que você se matar realmente, porque na verdade você vai estar fazendo um favor à humanidade, deixando a tua existência, deixando de incomodar socialmente. A grande vingança é você se manter vivo, cutucando, incomodando as pessoas.

Nesses 25 anos, quais foram os momentos de transição da companhia? Por exemplo, no seu livro O Teatro da Rainha de 2 Cabeças, diz que você no início esteve muito ligado com a dança-teatro. Por que você não trabalha mais com isso?
Na década de 80 a dança-teatro era uma linguagem muito adotada por vários grupos, e daí fui viver em Londres e comecei a ver que isso era uma linguagem que podia trazer uma certa universalidade para o meu trabalho. Mas com o tempo fui aprendendo que não era isso, que não adiantava ter essa universalidade. Eu precisava era me comunicar com o meu espectador. Foi isso que me puxou para uma dramaturgia mais concreta, calcada numa realidade social, numa realidade autobiográfica, e que expressa o meu momento histórico. É isso que tento colocar, o ser humano em condições que eu conheço, que eu consigo destrinchar. E também isso tem uma função de fazer um retrato histórico do psicológico desse momento. Pensar que isso historicamente pode ter uma contribuição. Você está estudando o psicológico do teu tempo e da tua sociedade. E foi uma conseqüência muito natural, talvez eu sinta que eu consegui evoluir melhor pra isso. Eu acho que a dança é muito burra, ela é muito retrógrada, muito mais atrasada do que o teatro. Ela tem uns 100 anos de história pra viver pra poder alcançar o teatro.

Você costuma acompanhar a dança hoje?
Não costumo ver mais porque... deu pra bola, né? As pessoas trabalham só o físico, elas esquecem de pensar a dança. Então quando elas resolvem pensar sempre sai alguma coisa muito burra. É muito mal elaborado esse pensamento. Talvez corporalmente possa sair bem, mas não conseguem elaborar direito algo maior.

E que outras coisas ficaram para trás no seu teatro? Por exemplo, nos seus manifestos você diz que fez questão de abolir qualquer método teatral, principalmente o método stanislavskiano.
Eu sou bem criticado por causa disso, por essa minha birra de achar que o teatro stanislavskiano já não vigora mais. Foi a sua época, e as coisas precisam evoluir. Hoje em dia existem coisas muito mais importantes para eu colocar para um ator, para um artista, do que ficar ensinando para ele como tomar uma xícara de chá, ou como sentir alguma coisa através de uma memória emotiva. A minha proposição é criar uma consciência mesmo, da importância da obra de arte pra esse artista. É burro você querer acreditar nessa fé cênica stanislavskiana que é proposta. O publico já não acredita mais. Esse teatro que quer fazer você acreditar e não consegue, isso me incomoda muito. É ingênuo.

No meu teatro, eu gosto de deixar bem claro é que o artista está ali se expondo. É esse o lado humano que eu quero colocar. Deixar claro que nós somos pessoas, temos opinião sobre as coisas. Não somos máquinas. Eu quero que os atores interfiram na obra, que eles coloquem as suas opiniões. É um universo que não é nem meta-teatro, é meta-vida. Eu quero que o teatro tenha uma relação maior com a vida, do que só com a obra. Isso é o que eu acho mais perigosamente interessante. Que esses artistas corram risco de estar ali se expondo, senão é tudo muito confortável, é muito empreguinho. Não tem adrenalina. A obra de arte tem que ser provocativa o suficiente pra te estimular.

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Entrevista César Almeida/ Parte 3: Influências



Suas peças são combativas, seus personagens estão sempre discutindo coisas. Você entra em cena e lê manifestos. No seu teatro o debate é mais importante do que mostrar uma história?
Eu acho que isso tudo deve vir junto. É a esses propósitos que eu sempre bato de frente com os artistas que fazem uma arte descompromissada com qualquer causa. Eu sou um ativista dessa maneira por que possuo uma causa que conheço, que me diz respeito. Eu não consigo conceber uma arte inconseqüente, uma arte que não tente pensar o seu tempo, que não se preocupe em colaborar para o teu processo histórico. Não consigo compreender uma arte que fica só explorando o seu próprio ego.

Você faz teatro de protesto?
Sim, eu acho que é um teatro de protesto.

E em Curitiba, quem, como você, também defende alguma causa no teatro?
Ninguém. Inclusive ao participar de debates com diretores daqui eu já ouvi esse tipo de comentário, que eles preferem não ter causa mesmo e preferem que o trabalho deles não tenha uma assinatura.

Arte pela arte...
Eu não sei, é uma arte pelo quê? Eu acho que não é nem pela arte, é uma arte pelo seu ego, pela sua falta do que fazer na vida. Vá fazer outra coisa! Faça alguma coisa que você realmente ame. Acho um desperdício de tempo fazer algo sem paixão, movido pela paixão.

E quem faz teatro de protesto no Brasil?
No Brasil, eu vejo a Denise Stocklos, que eu acho que faz um teatro político, de protesto, muito violento, e que eu gosto muito.

Mesmo quando você a chama de Denise Stopa em Hamletrash?
Mas aquilo ali era pura brincadeira, porque eu amo aquela mulher (risos). Eu a persegui vários anos. Nunca consegui contato nenhum, mas é o meu sonho fazer alguma coisa com ela. Eu vejo muito o trabalho dela como inspiração, é um estimulante pra mim.

E das figuras históricas de Curitiba: Oraci Gemba, José Maria Santos, Cleon Jaques, entre outros, quem te influenciou?
Olha, é tão difícil. Eu não posso te dizer que eu tive alguma influência. Uma pessoa que eu posso mencionar que eu gostava muito, mas foi muito rápida a passagem dele, foi o Raul Cruz [artista plástico, cenógrafo, dramaturgo e diretor, falecido em 1993]. Eu sentia algo maior na arte dele.

Eu não o conheci. Como era o trabalho dele?
Era um trabalho muito autobiográfico, um trabalho que falava muito da própria dor dele, do momento dele, da necessidade que ele tinha de externar aquilo em forma de arte. Ele sempre foi muito a fundo em tudo o que fez. E nós tínhamos assim uma afinidade de linguagem.

"Eu não consigo ver as pessoas fazendo um teatro realmente verdadeiro aqui em Curitiba. Elas sempre estão trabalhando de uma maneira a serem coniventes com uma política cultural. A única preocupação delas é não provocar. É toda a antítese do que eu gosto no meu trabalho. As pessoas não se comprometem, não se identificam, não expõem o que se sentem."

Vocês chegaram a fazer algum espetáculo juntos?
Eu cheguei a ensaiar um espetáculo [chamado A Ponte], que foi o penúltimo espetáculo dele, mas daí não consegui ficar... O clima era muito pesado. Era o momento que ele estava morrendo de AIDS e aquele espetáculo queria na verdade dizer isso metaforicamente, que ele estava se preparando simplesmente para a morte.

E daí no momento não era uma coisa que eu estivesse predisposto a fazer. Então resolvi deixar o trabalho porque não estava querendo me contaminar com aquele clima. Era muito triste para mim ver aquilo e não poder fazer nada. Era uma sensação muito grande de impotência, da parte dele também, e isso era uma coisa que me entristecia demais. Era meio que um adeus dele.

Depois acho que ele fez ainda mais uma peça [A Outra] no Guaíra, pelo TCP, que deram pra ele fazer. Mas ele já estava extremamente mal. Foi uma coisa meio de encomenda, não considero um trabalho de peso dele. Mas foi uma pessoa que me influenciou muito.

Agora, eu não consigo ver as pessoas fazendo um teatro realmente verdadeiro aqui em Curitiba. Elas sempre estão trabalhando de uma maneira a serem coniventes com uma política cultural. A única preocupação delas é não provocar. É toda a antítese do que eu gosto no meu trabalho. As pessoas não se comprometem, não se identificam, não expõem o que se sentem. Eu não consigo entender a arte como uma não exposição, eu acho que o artista tem que ser pleno na exposição, ele tem que arcar com o preço da sua exposição. Agora, se você vai ficar fazendo uma arte que não corresponde ao que você é, por que escolher ser artista? Eu acho que existem outras profissões que vão incomodar menos.

Das companhias curitibanas atuais não tem nenhuma que você acompanhe?
Olha, eu gosto muito do trabalho do Felipe Hirsch, que já não está mais em Curitiba, mas era a pessoa que eu mais gostava. De resto, não consigo ver ninguém fazendo alguma coisa... As pessoas ficam brincando de fazer teatro aqui. Ficam se enganado que são artistas. O meu conceito de ser artista não condiz com isso. Acho muito pouco, a entrega é muito pouca.

E no Brasil?
Acho que existem pessoas que tem um trabalho esporadicamente bom, algumas criaturas que às vezes tem um brilho. Eu não conheço o trabalho do Antônio Araújo [diretor do Teatro da Vertigem, em São Paulo], nunca consegui ver o trabalho dele, que me dizem que é muito bom, e que tem alguma coisa a mais a dizer. Eu acho que a única pessoa que me dá prazer de ver o trabalho ainda é a Denise Stocklos.

E o Gerald Thomas? Você chegou a trabalhar com ele, não?
Uma época ele vinha pra Curitiba montar uns espetáculos especialmente para o festival. E daí numa dessas ele abriu um teste e acabei fazendo dois trabalhos [Nowhere Man e Os Reis do Iê Iê Iê] com ele, fiz algumas viagem... Foi bem bacana. Gosto muito do trabalho dele, acho muito interessante. Ele é muito hermético, ao mesmo tempo em que ele consegue ser muito autoral. É uma coisa que me agrada muito.

Só que ele é tão cheio de referências, que essas referências acabam deixando ele uma pessoa insuportavelmente arrogante. As pessoas não têm capacidade pra fazer uma leitura mais profunda da obra dele porque é preciso ter uma bagagem cultural muito grande pra você poder curtir. Senão aquilo acaba passando batido.

Talvez ele seja a criatura mais globalizada do teatro brasileiro. Ele tem referência de muita coisa que está acontecendo no planeta, tem vivência disso, e isso acaba sendo transposto para o trabalho dele. Mas as pessoas não tem obrigatoriedade de serem geniais como ele para poderem partilhar da obra de arte. É uma criatura muito doida, um artista muito preocupado com a sua obra, preocupado em fazer algo realmente contemporâneo. E consegue, e faz uma obra polêmica, instigante. Mas essa questão do referencial dele é muito forte e as pessoas nunca vão conseguir entender o trabalho dele da maneira como ele gostaria. Ele também não está nem aí, continua fazendo a obra dele. É um cidadão do mundo.

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Entrevista César Almeida/ Parte 4: Posicionamentos



Ao criar uma peça, você busca atingir um público específico?
Em primeiro lugar, eu gosto de trabalhar para o público gay. É um público que ainda necessita desse trabalho, que precisa de maior visibilidade, e as pessoas tem muito preconceito ainda de fazer uma obra de arte que possa ser rotulada como gay. Que é uma preocupação que eu não tenho.

Mas você acha que existe uma arte heterossexual?
Então, exatamente, eu acho que essa arte hetero está tão estéril ultimamente, tão ruim. O artista heterossexual parece que já não tem mais nada a dizer. Parece que fica divagando sobre o nada.

Tirando a luta concreta por direitos iguais, o que uma arte homossexual pode trazer de diferente?
Isso é bem complexo, porque a questão da homossexualidade parte do princípio do desejo. Ela rediscute o desejo. O desejo heterossexual já está bem estabelecido, é mais limitado, não tem grandes variantes. Eu vejo que as relações heterossexuais não tem evoluído nessa maneira de se libertar. É um fator de conforto que as pessoas talvez busquem socialmente. De achar que a postura hetero é socialmente aceita e se satisfazer com isso. Eu acho que isso é muito pouco.

Já uma arte homossexual pode abrir muito mais esse leque de discussão, de como é esse desejo, de como ele se processa e cada vez parece que ele vai se tornando mais complexo. Isso abre uma possibilidade de novas variantes, o que é muito interessante.

Tenho a impressão de que os homossexuais em geral vivem mesmo relações muito mais dinâmicas, mais ousadas e conturbadas do que os heterossexuais. Isso para a arte é um prato cheio, não? Basta ver a riqueza das histórias, a complexidade dos personagens presentes em um filme do Fassbinder, do Almodóvar...
Exato, o homossexual tem muito mais abertura para falar o que sente e para expressar isso da maneira como ele sente. É uma maneira de quebrar uma barreira social. A partir do momento que você se assume homossexual, você já deu um basta para a sociedade em vários aspectos e isso já te liberta para uma série de coisas que o heterossexual não gosta de mexer, que ele prefere deixar guardado, deixar sem ser discutido.

Em Ardor 2, depois que todos os personagens morrem, a mensagem que saí de uma misteriosa caixa vermelha é: “o amor no fim é o grande culpado de nossos atos”. Você se considera um pessimista, um cético?
Eu sou completamente cético. Aliás, cada vez mais cético. O meu trabalho anterior, [O Vampiro de Cioran] era sobre esse autor romeno, o Emil Cioran, que é a criatura mais cética que eu já vi na minha vida. Eu me apaixonei pelo trabalho dele e me identifiquei muitíssimo. É exatamente daquela maneira que eu me sinto nesse momento. Eu não consigo mais acreditar em nada. Eu acho que a única coisa que vale a pena acreditar ainda é o amor, porque ele é que nos impulsiona de alguma maneira que não seja racional, a fazer alguma coisa nessa vida.

Mas e essa afirmação sobre o amor que você coloca em Ardor 2? Bem, realmente você não diz que não se deve acreditar no amor. Apenas constata que ele é o culpado de nossos atos...
É, o amor te leva tanto para o bem como para o mal. Mas eu acho que é ele que tem que te levar e não você que tem que matá-lo para poder viver socialmente.

Então não vale a pena viver sem amor?
Eu acho que não. Só vale a pena viver com amor, mesmo que se cause mal, mesmo que seja um tormento. Uma relação é sempre tumultuada, tormentosa. Não tem como você escapar disso, mas é a única coisa que ainda vale a pena.


"Eu não me sinto nem um pouco pesando no bolso do contribuinte. É uma necessidade que as pessoas têm da arte e o estado tem que suprir isso. Sempre foi assim. Em Roma já se sabia que era pão e circo, entendeu? Não pode dar só pão. O Requião pensa que é só dar pão. Não é."

Você sempre faz questão de defender nas suas peças os direitos dos homossexuais mas, ao mesmo tempo, não deixa de tirar sarro deles. Em Ardor 2, a transexual Samantha, depois de ver a confusão que alguns gays fizeram no seu casamento, diz algo como: “Por isso que não libera casamento gay. Senão quebra a igrejinha”. Os teus personagens não se levam a sério. Você se leva?
Eu aprendi isso com a vida, entendeu? Quanto mais a sério a gente leva a vida, pior ela fica. Não há como levar a vida a sério. É uma coisa que eu sempre discuto com o meu psiquiatra: eu não quero ser uma pessoa improdutiva. Talvez isso seja o meu levar-se a sério. Eu continuo fazendo, mas não consigo mais acreditar que qualquer coisa possa ter algum efeito renovador. Mas o mesmo tempo eu vou continuar lutando.

É talvez como acreditar em Deus. Tem gente que acredita e morre por isso. Problema de quem acredita. Talvez seja um bálsamo para suas dores da alma. Mas eu não consigo, não consigo ter nada que seja esse bálsamo para mim. A única coisa que eu posso fazer por mim mesmo é isso, é não me levar a sério, nada merece ser levado tão a sério assim. A questão da morte da ética que eu coloco no começo da peça [Ardor 2]. Nossa, eu ainda acreditava nisso, até o Lula entrar no poder. Eu acreditava que a esquerda pudesse ter uma ética.

Você votou no Lula?
Votei. Mas agora não tem mais possibilidade alguma de se falar em ética. Eu acho que o ser humano tem que entender a sua pequeneza. O ser humano se valoriza demais e a moral é uma forma de fazer essa valoração da existência. E, no fim das contas, a gente está aqui por um momento, apenas isso, apenas um momento. Depois, como dizia Beckett, uma das criaturas mais lúcidas que já fez teatro, é isso: uma luz que brilhou por um instante e depois se apagou. Infelizmente não dá pra gente ficar esperando essa coisa de uma vida além túmulo. Acho tão terrível para uma pessoa o dia que ela morrer e ver que não vai ter isso. Aí é que vem esse ditado, que a esperança é a ultima que morre. Porque ela só vai morrer a partir do momento que a gente deixar de existir.

Acho que talvez eu faça isso no meu trabalho, um pouco panfletário, talvez, contestador, porque acredito que é uma causa que as pessoas ainda precisam aprender: ter um olhar mais brando com o homossexual, se incomodar menos com a sua condição. Deixar que as pessoas vivam de acordo com a sua natureza e não de acordo com a natureza dos outros. Talvez se eu puder servir de exemplo para algumas pessoas, isso possa ser benéfico para o planeta de uma maneira geral. Ou pelo menos para a vizinhança,.pelo menos para o prédio que aquela pessoa mora.

Você defende um humanismo, então. Nada muito específico...
Exato, nada muito específico. É uma questão de se conviver melhor, de sermos menos incomodados, de nos levarmos menos a sério e sabermos da nossa irrisória existência. A partir do momento que a pessoa começa a se valorizar demais ela começa a provocar coisas desagradáveis ao seu redor. Ela vai provocar guerra pra tomar um espaço da outra, pra tomar o emprego da outra, pra destruir a capacidade profissional da outra. Porque ela acha que assim ela vai se sobressair. E, no fim das contas, todos vamos voltar ao pó! Pra que isso? Pra que uma coisa tão perversa, tão animalesca? Isso só pode partir de um instinto muito atávico do animal homem, que é esse impulso de matar mesmo. Às vezes você mata a pessoa profissionalmente, às vezes socialmente. Você aniquila aquele ser humano e isso é uma coisa muito triste de se ver. Vai contra a civilização, vai contra o movimento da vida talvez, de humanização, de civilidade.

Você acha que o teatro deve ser subvencionado?
Eu acho. É uma coisa que eu estava até comentando um dia desses: meu Deus, o governo subvenciona gasolina, o trigo, enfim, coisas que a gente pensa: mas isso não teria necessidade! Mas tudo isso é subvencionado. Imagine a arte, que não consegue se pagar por si. Tem que ser subvencionada! Eu não me sinto nem um pouco pesando no bolso do contribuinte. É uma necessidade que as pessoas têm da arte e o estado tem que suprir isso. Sempre foi assim. Em Roma já se sabia que era pão e circo, entendeu? Não pode dar só pão. O Requião pensa que é só dar pão. Não é. As pessoas precisam do circo também. É necessário. Isso está mais do que provado historicamente.

E sobre a falta de reconhecimento dos teus trabalhos? Em Ardor 2, por exemplo, um personagem diz algo como: “o que é um Gralha Azul? É só um granito com um metalzinho. Todo mundo ganha”. Mas na verdade você nunca ganhou, nem foi indicado...
(Risos) Exatamente. Porque eu estou sempre na contramão da política estadual paranaense. É um prêmio político, não vai deixar de ser político, e eu não tenho vontade de participar disso. É matar a minha arte eu querer ser conivente com a linha que eles propõem. É meio contra o que eu acredito como artista. No dia que eles quiserem dar o prêmio é pelo que está aí, pelo que eles estão vendo. Não vou correr atrás, entendeu? Assim como nunca corri.

Não ganhar o prêmio te incomoda?
Claro que me incomoda, porque as pessoas que ganham geralmente tem um trabalho comprometido com essa questão de reproduzir uma obra de arte careta, e essa obra de arte logicamente vai render uma coisa no fim do ano que é um cheque. Esse cheque me incomoda sim, eu podia estar ganhando esse dinheiro. Esse dinheiro podia estar vindo na minha mão. Mas a arte pra mim é mais importante do que o fator capitalista dela. Senão eu não ia estar fazendo. Nesse aspecto que eu digo que o meu trabalho é diferente do que as pessoas tem feito. Geralmente as pessoas preferem nadar com a correnteza. É bem mais rentável isso. Os lucros, os louros... Tudo vem mais fácil. Só que daí eu não entendo qual é o barato de ser artista dessa maneira. Se você não tem um motivo por trás da obra de arte, não tem motivo pra obra de arte existir. E muita gente faz assim, como em tudo na vida. Vive por viver, vegeta por vegetar. E assim faz a arte também. Uma arte estéril, burra, sem emoção, sem verdade, sem comprometimento. Isso não me interessa. Viver sem paixão não me interessa. Eu faço a minha arte apaixonadamente por ela. É a maneira que eu tenho de continuar vivo.

Como é a tua relação com os atores? A tua ironia, a tua acidez, você usa contra eles?
Olha, às vezes é difícil fazê-los entender. As vezes eles não conseguem entender e eu preciso usar de uma dose de agressividade...

Você é uma pessoa difícil de conviver?
Sabe, eu acho que já fui uma pessoa difícil, hoje em dia em tento me fazer mais fácil no convívio com as pessoas. Mas é difícil explicar para eles o meu senso de humor. Às vezes vai de encontro aos princípios morais deles. Às vezes eu faço brincadeiras com coisas que são muito sérias para eles: a religiosidade deles, a moral, a ética, o desejo de glória, de fama. Então é complicado você explicar para eles que tudo isso é vão, que isso tudo não vai levar a nada, que é tudo uma ilusão de ótica.

Nas suas peças há sempre muita nudez. Isso faz parte de uma estética? É para chocar?
É gosto mesmo.

Você se incomoda se alguém for assistir a um espetáculo seu também para ver um homem, uma mulher pelado? Você acha ruim?
Não, eu acho ótimo. É uma delícia você ver o nu. É um prazer, mesmo que a tua hipocrisia diga que não é. É um prazer que vai além das tuas reservas morais. È um prazer que sensibiliza uma outra região do teu cérebro. Não é um prazer que passa pelo racional, é um prazer que te pega via instinto mesmo.

Nos meus trabalhos sempre tem que ter alguém pelado. Em A Autoridade do Desejo (2004), por exemplo, os atores ficavam muito nus, todos os atores, e era um processo de desinibição que a gente foi quebrando lentamente. Eles ficavam tão à vontade que as pessoas ficavam chocadas com a naturalidade que a coisa corria. Era bom de ver isso.

Tem muita gente que vai nas minhas peças pra ver gente nua, mas além de ver o nu essa pessoa vai ouvir tantas coisas que talvez ela não quisesse ouvir, junto com aquilo, que pra mim valeu. Eu a trouxe ao espetáculo por algum motivo. O peixe não vem sem a minhoca no anzol.

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7 de set. de 2007

+ Teatro
A arte de sugar o próximo
Companhia Silenciosa volta a encenar Parasitas, espetáculo que compara relacionamentos afetivos ao parasitismo biológico


Em Parasitas, a maquiagem é um elemento que se destaca. Não por acaso. “Quando eu li a peça, senti que aqueles personagens sofriam tanto, que imaginei sangue saindo da cabeça deles”, diz a maquiadora Léo Glück. Léo então fez questão de marcar os atores com feridas vermelhas e também enrolou os pescoços deles com fita adesiva.

Há dois anos, eu estava um dia na biblioteca do Instituto Goethe quando, súbito, gritos estridentes irromperam do lado de fora da sala. “O que será que está acontecendo?”, perguntei, assustado, à bibliotecária. Ao que ela respondeu tranqüila: “Ah, é só o grupo que está ensaiando uma peça no auditório”. Esse grupo, ironicamente, se chamava Companhia Silenciosa, e a peça que ensaiava era Parasitas, do dramaturgo alemão Marius von Mayenburg.

A peça, então inédita no país, estreou oficialmente no final de 2005 na Casa Hoffmann, e por fim seria montada no Ateliê de Criação Teatral (ACT), dentro do festival de Teatro de Curitiba em 2006.

Agora, com um elenco diferente, Parasitas ressurge em curta temporada no Teatro Cleon Jacques, de 6 a 16 de setembro (quinta a domingo, às 20h). O ingresso para o espetáculo é uma lata de leite em pó.


Quem são os parasitas
Repleto de humor negro, o drama de Marius von Mayenburg retrata momentos difíceis, de mudança, na vida de um jovem que foi atropelado.
Com o acidente, Ringo (Wagner Correa) fica paraplégico e passa a questionar se sua esposa Betsi (Giorgia Conceição) ainda lhe ama.

Ao mesmo tempo, sua cunhada Friderike (Ana Ferreira), que está grávida e também vive um período de crise com o marido Petrick (Angelo Cruz), vai morar em sua casa.

Como se isso não bastasse, além de ter de suportar a parente indesejada, Ringo começa a receber visitas inoportunas de Multscher (Adolfo Pimentel), o velho solitário que o atropelou e que agora deseja ser seu amigo.

Eis os “parasitas” a que o título da peça se refere, visto serem pessoas que mantêm relações mútuas de exploração psicológica.


Mas além dos personagens citados, o diretor Henrique Saidel revela que criou para a montagem uma nova figura, inexistente no texto original: “A peça possui milhares de rubricas dizendo: choro; caem lágrimas. Em quase todos os personagens e em vários momentos, o que eu acabei cortando”, diz ele. “Então peguei todo esse choro e coloquei num personagem só”, o qual batizou de O espírito da Alemanha que chora, interpretado por Nina Rosa Sá.

O espírito, que apenas fica vagando pelo palco sem dizer palavra alguma, “serve para catalisar toda a pungência da peça”, afirma o diretor.

Serviço
Parasitas, de 6 a 16 de setembro (quinta a domingo), às 20h, no Teatro Cleon Jacques – Parque São Lourenço. Ingresso: uma lata de leite em pó. Informações: 3313-7190.

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6 de set. de 2007

Montagem é pioneira no Brasil
Parasitas é uma das três peças do alemão Marius von Mayenburg que estão traduzidas para o português


Mayenburg já recebeu o Prêmio Kleist de dramaturgia por Cara de Fogo em 1997, e o prêmio da Fundação de Autores de Frankfurt em 1998.

A Companhia Silenciosa foi o primeiro e ainda é o único grupo a encenar no país a peça Parasitas (Parasiten), do alemão Marius von Mayenburg. Das 11 peças que ele escreveu, apenas mais duas foram traduzidas para o português: Senhorita Danzer (Fräulein Danzer) e Cara de Fogo (Feuergsicht).

Aos 35 anos, residente da Schaubühne am Lehniner Platz em Berlim, Mayenburg é considerado um dos principais dramaturgos europeus da atualidade. No momento, a Royal Court, de Londres, encena seu último trabalho, Der Hässlisch (O Feio), que em inglês recebeu o título de The Ugly One.

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+ Entrevista
Diretor de Parasitas fala sobre a montagem da peça
O parasitismo é algo natural, mas não precisaria ser assim, diz Henrique Saidel
Fotos: Franco Fuchs


O diretor Henrique Saidel é um dos eixos que sustentam a Companhia Silenciosa, ao lado de Giorgia Conceição e Léo Glück. Os três formaram o grupo em 2002, enquanto cursavam a Faculdade de Artes do Paraná (FAP), e desde então já realizaram 16 montagens.

No momento, a companhia reapresenta a peça Parasitas, no Teatro Cleon Jacques, até o dia 16 de setembro.

A seguir, confira a entrevista feita com Henrique, horas antes do primeiro ensaio geral da peça.

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Francofonia – Num dos programas antigos de Parasitas, havia um texto, aparentemente científico, dizendo que o parasitismo existia “desde o surgimento da vida, há 4 bilhões de anos atrás, em todas as espécies...” Para você, o parasitismo é mesmo algo inevitável nas relações humanas?
Henrique Saidel – Quando estávamos montando a peça, fizemos uma pesquisa de termos e palavras. Parasitismo era uma delas. O texto que colocamos no programa então foi tirado de uma monografia de biologia, que falava de parasitas. Quando li aquilo eu pensei: nossa, que loucura! Na realidade não foi tanto acreditando nisso. Não quis fazer um transporte do biológico para o social. Mas achei tão peculiar o determinismo da frase, afirmar que isso sempre existiu... Eu achei curioso. De fato, em termos biológicos, o parasitismo é uma coisa inerente à vida. Tem bicho que só vive disso, não tem outro jeito de viver.

Mas assim como eu concordo que o parasitismo é algo natural, também acredito no contrário disso, que você não precisaria ser parasita. No entanto é normal que existam essas relações, mesmo que a gente não goste.

Francofonia – Você se consideraria um parasita? Ou um parasitado?
Saidel – Isso sempre rola, mas também é difícil determinar esses limites. Por exemplo, existem parasitismos que são benéficos, como a nossa flora intestinal [conjunto de bactérias que habitam o intestino], e se não fossem eles a gente não ia conseguir viver. Mesmo em termos biológicos, nem todo parasitismo é ruim. E dizer que eu sou um parasita ou que eu sou um parasitado dá uma impressão que é uma coisa permanente.

Eu acho que essas coisas se estabelecem de forma pontual. Daí a gente pode entrar também em questões panfletárias e dizer que somos parasitados pelo governo... Mas eu não me sinto muito à vontade para transitar por esse campo. Mas podemos alegar isso, e dizer que eu também parasito, sei lá... se eu faço um gato na Net. Eu parasito a Net, se a gente for colocar assim. (Risos) Não vai colocar isso, hein?

Isso rola de monte. Isso é parasitismo? Pode ser, né? Mas é uma coisa que acontece sempre, e em certa medida todo mundo em algum momento já parasitou. Desde uma mãe que mima demais um filho, o filho que é muito mimado e fica lá pedindo me dá isso, me dá aquilo, e o pai vai lá e se f.... pra pagar. Se você for levar isso radicalmente, você pode considerar uma forma de parasitismo. Ou então uma pessoa com mais de 30 anos que ainda não saiu da casa dos pais...


“Lendo o texto, eu ria muito. Depois é que eu parei para pensar do que eu estava rindo.”


Francofonia - Como o texto de Parasitas chegou até a Companhia Silenciosa?
Foi um caminho meio tortuoso. A Ana Christine, uma amiga nossa, foi morar em Buenos Aires, e um dia ela mandou um e-mail dizendo que tinha descoberto um autor no ciclo de leituras que o Goethe promovia lá. Ela tinha visto La Niña Fria (Das kalte Kind) [também de Marius von Mayenburg] e disse, olha, vocês tem que conhecer esse cara. E aí eu comecei a pesquisar. Ela então mandou para a gente uma tradução de Parasitas, mas que não tinha o nome do tradutor.

Mais tarde, quando decidimos montar o texto, eu baixei uma outra tradução no site do Goethe, mas era uma tradução em português de Portugal. Então fui conversar com a Claudia [Römmellt, diretora do Goethe Institut em Curitiba] no Goethe a ela conseguiu que a Christine Röhrig cedesse a tradução dela para gente, que coincidentemente era a mesma que a nossa amiga tinha nos mandado. Depois a Claudia conseguiu que a editora na Alemanha nos cedesse os direitos do texto original.

Ao mesmo tempo, era a minha montagem de final de curso [na FAP] e a gente pensou: vamos experimentar fazer um texto de outra pessoa – porque até então a gente só montava textos nossos. Parasitas é um texto que, comparado aos nossos, é mais tradicional. Decidimos também ser fiéis a ele, e fomos. Só cortei uma cena, uma fala maior do Petrick com a cobra, que eu achei meio desnecessária. Mas dentro das cenas não há corte nenhum.

Francofonia – E o texto, ele foi escrito em 1999...
Saidel – Foi escrito em 1999 e estreou em 2000, em Hamburgo, quando o Mayenburg ainda estava lá. Depois que estreou Parasitas que ele foi para Berlim. Quem dirigiu foi o Thomas Ostermeier, que agora está na Schabühne. Ele foi chamado para dirigir na Schaubühne e levou o Mayenburg junto.

Francofonia – E a tradução da Christine Röhrig foi feita em 2002...
Saidel – Eu não lembro exatamente, mas foi logo depois. A tradução é super recente. Tanto que quando a gente fez a montagem no ACT (Ateliê de Criação Teatral) em 2006, e a Christine [Röhrig] veio assistir.

Francofonia – E o que ela achou?
Saidel – Olha, ela disse que gostou bastante. Não sei se ela costuma dizer que gosta de coisas que não gosta, e falou só para agradar, mas ela disse que gostou, e disse até que pensou em mudar algumas coisas na tradução, rever alguns termos, vendo a montagem. (...) Foi bem bacana conhecê-la, até porque várias coisas que a gente gosta, os textos do Heiner Müller, por exemplo, tem sempre o nome dela. Dela e do Marcos Renaux.

Francofonia – E vocês foram os primeiros a encenar Parasitas?
Saidel - Sim. Antes já tinha sido feita uma leitura dramática da peça num ciclo de leituras em São Paulo. Lá eles leram vários textos do Mayenburg, inclusive o Parasitas. E daí tinha sido feito uma montagem em São Paulo da peça Cara de Fogo (Feuergesicht). Mas do Parasitas não tinha sido feito montagem nenhuma, e a gente confirmou isso com a editora.



Francofonia – Qual é a importância desse texto e do autor Marius von Mayenburg?
Parasitas e Cara de Fogo foram os textos com que ele mais ganhou prêmios. Agora ele deve estar com 35 anos, mas antes ele era super novo e de repente ganhou tudo. Daí o Ostermeier também bombou e eles foram para Berlim.
Agora, na realidade, a gente nunca parte disso, de pensar, ah, vamos montar um texto importante... Mas o que ajudou a gente a decidir fazer esse texto foi o fato de ser um texto alemão, de ter um ponto de contato com a cultura alemã, que na época estávamos muito ligados. E a gente achou importante também pelo fato de trabalhar com um texto contemporâneo, um texto novo.

Francofonia – Aproveitando esse gancho, o que o estilo e a proposta de Mayenburg tem em comum com a Companhia Silenciosa e os trabalhos que o grupo vem desenvolvendo?
Saidel - Formalmente talvez não tenha muita coisa a ver entre a Companhia Silenciosa e o Mayenburg. Vendo o espetáculo tem, porque a gente daí revestiu com o nosso estilo, mas lendo o texto, o que mais nos aproximou foi a questão do tema e da ironia, de coisas que são ditas mas não sãos, os subterfúgios... Só que formalmente costumamos ir por um sentido oposto. A gente trabalha com esses temas escapando um pouco da relação com os personagens miméticos.


Já o texto cai direto nisso, a ironia e a coisa está na relação dos personagens em si. Mas as duas propostas se tangenciam no ponto da crueldade, não uma crueldade artaudiana ou de sangue, mas numa crueldade nas pequenas coisas... No avacalhar um pouquinho com o outro, puxar o tapete, fazer umas brincadeiras para desestabilizar... E quando a gente lia o texto, a agente não acreditava: puxa, olha o que o cara está falando! Isso aqui é muito bom! Rolou uma identificação nesse sentido, do tema e do humor.

Mesmo sendo um texto super pesadão, ele tem uns momentos muito engraçados, que você dá uma descontraída. Tem muito humor negro.

Francofonia – Dá para considerar a peça uma tragicomédia?
Saidel – Não sei, porque tragicomédia me lembra uma coisa meio de costumes... É tão complicado definir isso, porque a gente vendo fotos e comentários das montagens alemãs, não se falava de comédia em nenhum momento. E nós achávamos tudo muito engraçado, tanto que eu te falei: lendo o texto, eu ria muito. Depois é que eu parei para pensar do que eu estava rindo. E isso aconteceu na leitura dramática também. Eu fiquei com medo, porque virou quase que um pastelão, a platéia rindo...


É engraçado como surge humor de coisas, situações, questões que a principio não deveria surgir humor. É tudo tão triste... Mas uma coisa que a gente luta a todo custo nos ensaios é também não fazer dessa peça um dramão.
Quando a coisa está ficando muito séria, eu já páro e digo: gente isso aqui não é um drama, vocês estão fazendo um dramão...


Francofonia – Sobre alguns aspectos da tua montagem: como surgiu a idéia de colocar, num dos momentos mais tensos da peça, a personagem Friederike falando através de um videokê?
Saidel – O videokê surgiu na leitura dramática [que a Companhia Silenciosa realizou no Teatro José Maria Santos na metade de 2005]. Afinal era uma leitura e tinha que se colocar o texto em cena. Mas foi também uma questão brechtiana, de mostrar que o que está sendo dito foi preparado antes, que aquilo é teatro, que isso aqui que está todo mundo achando engraçado ou chorando foi porque alguém mandou dizer. Daí o momento foi escolhido a dedo, que é a hora mais chorosa da peça, quando Friderike tenta se matar, toma os comprimidos. Então eu pensei: é aí que eu vou botar esse videokê!

Francofonia – Você acha que sem o videokê, sem esse distanciamneto, as pessoas iam ficar muito abaladas?
Saidel – Olha, me conhecendo e conhecendo o resto da Companhia, a gente não ia agüentar fazer uma coisa muito impactante nesse sentido. A gente ia acabar inventando alguma outra coisa, que também não fosse tão estritamente dramática. Mas é que o texto em si, caminha nessa hora para isso. Por exemplo, nessa hora eu não ri, lendo o texto. Eu fiquei sério alguns segundos e daí quando foi mais para o final da cena eu pensei: putz, que piegas isso! e já saí um pouco do sério.

Mas isso não é só no videokê. Tem vários elementos, a sonoplastia também vai muito forte nesse caminho [de quebrar o clima tenso]. As musicas acabam funcionando como um texto complementar, melodicamente e na letra. Quando a gente fez a pré-estréia da peça no então Teatro Edson Bueno, o diretor Marcio Abreu disse que gostou muito das músicas e que elas faziam pausas na peça. A coisa está indo e, de repente pára, dá uma respirada. Eu não tinha pensado nisso, mas segundo ele isso dava uma chance para os espectadores pensarem um pouco nas coisas que estavam acontecendo antes de seguir em frente. Eu achei isso interessante. As músicas tocam quase todas até o fim, e algumas tem cena em cima e outras não. Algumas vezes pára a cena, toca a música, continua a cena. É o caso do funk...

A musica quebra o ritmo e conversa com o texto. Ela caminha de forma paralela. A gente construiu as cenas primeiro e depois colocou a sonoplastia. Ela é mais um elemento significante na coisa toda.

Francofonia – E como surgiu a aula de alemão (em forma de gravação, que se escuta no início da peça)? Aquilo cria um efeito hipnótico...
Primeiro que ninguém sabe falar alemão. Eu pensei, putz, um texto alemão... vamos dar uma aulinha de alemão para as pessoas aprenderem, um primeiro contato com a cultura alemã (Risos). E também a peça já começa de cara com uma brincadeira. Para as pessoas pensarem: uma coisa assim não pode ser exatamente muito séria, uma aula dessas...

Francofonia - Sem contar que essa questão da aula de idioma tem a ver com teatro do absurdo, não?
Sim, a idéia da peça A Cantora Careca, do Ionesco, partiu de uma aula de inglês. Ele usou várias frases de um livro.


“Então eu chego pra Nina [Rosa Sá] e falo: Nina, você tem que fazer duas coisas nessa peça: você tem que andar por aí devagarzinho e chorar.”

Francofonia – Foi uma referência explícita a isso, ou não?
Saidel – Não, nesse sentido não. A intenção era mesmo assim: isso aqui é uma aulinha, aprendam algumas coisas. Coisas que vocês devem saber antes...

Francofonia – Para a encenação, você criou um personagem que não existe no texto original: “O espírito da Alemanha que chora”. Por que e o que ele representa?
Saidel – isso reflete várias coisas. Primeiro é um pouco da minha relação em ter um texto fechado. Eu pensei, puxa, tem que ter uma coisa minha aí pra brigar com isso, né. (Risos). Tem que furar isso de alguma maneira. Esse embate com o texto foi o que norteou a coisa. E daí no texto havia milhares de rubricas dizendo assim: choro; caem lágrimas. Em quase todos os personagens e em vários momentos, o que eu cortei. Aí o que a gente fez: pegou todo aquele choro e botou numa figura só. Então eu chego pra Nina [Rosa Sá, atriz] e falo assim: Nina, você tem que fazer duas coisas: você tem que andar por aí devagarzinho e chorar.

Na verdade eu disse: você vai chorar e picar lenha. Que a idéia era ela ficar picando lenha ao longo da leitura dramática, enquanto chorava. Só que daí acabamos deixando a parte da lenha para o final. Mas então ela serve para condensar, catalisar todo esse lance do choro, da pungência, do sentimento. Ela é a única que não tem quebras nisso. Ela começa e vai. Tanto que até o andar dela é mais deslizante, ela aparece nuns cantos...

Bom, então assim surgiu o personagem. Depois eu tinha que dar um nome para ele. E aí como é que eu ia colocar no programa? Então fiquei pensando e me veio assim: “O espírito da Alemanha que chora”, meio de brincadeira, e acabou ficando.

Francofonia – Mecânica, a última peça da Companhia Silenciosa, e o El Murciélago Desenfrenado, leitura dramática que vocês apresentaram recentemente, eram um tanto quanto abstratas, complexas. Comparando com esses trabalhos, Parasitas é uma peça mais simples, mais acessível ao grande público?
Saidel - Eu acho que é. Mas não que seja uma peça mais simples. O fato de ser mais parecido com outras coisas, estruturalmente, principalmente essa questão dos personagens – são duas famílias –, proporciona uma identificação. Eu acho que é mais simples nesse sentido. Cronologicamente, ela também é mais linear. Ela parece mais simples por causa disso. Ela parece mais teatro no senso comum do termo, e nesse sentido ela é mais próxima do grande público.

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2 de set. de 2007

+ Leituras recentes
Descobrindo Marcos Prado

carniça e caviar

ao lado dos sonhos, sempre haverá suspiros
amigos bebem todos os dias aos litros
e no fim da noite trocam tiros
não sem antes distribuir brutos sopapos
o álcool transforma príncipes em sapos
e mariposas em vampiros
a ressaca transforma todo mundo em escombros
os pesadelos curtos em longos
para uma longa noite, uma manhã em frangalhos
caminhos de bêbados são atalhos
zigzags, tropeços e tombos

*


120 minutos

espero que amanheça, não pelo sol, mas pelo ônibus
a cidade está atenta caso eu durma na praça
pra roubar minha jaqueta bota cigarro e o vale-transporte

quero que amanheça, não para acordar, mas para dormir
o primeiro ônibus passa às seis e são quatro
escrever para ficar acordado, única alternativa

peço que amanheça, não pela manhã, mas pela noite
que eu passei bebendo e esperando o primeiro ônibus
e me fez escrever até agora que ele está chegando



Acima, duas poesias muito boas que integram a antologia Ultralyrics (Travessa dos Editores, 2005), do poeta curitibano Marcos Prado (1961 - 1996). O poema “Carniça e Caviar” (parceria com Edson de Vulcanis), em especial, está dentro do CD que acompanha o livro, e é declamado pelo próprio Marcos.


Marcos Prado nasceu em Curitiba, PR, a 15 de dezembro de 1961. Foi poeta, tradutor, letrista, ator e assíduo colaborador em jornais e revistas. Morreu em 31 de dezembro de 1996, aos 35 anos. Algumas coletâneas de que participou: Sala 17 (1978); Reis magros (1979); Sangra:Cio (1980); Feiticeiro inventor (São Paulo, editora Criar, 1985); e Outras Praias/Other Shores - 13 poetas emergentes (Iluminuras, 1997).

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